David Fernàndez. “Este país, de alguma maneira, já se foi de Espanha”

O antigo porta-voz da CUP não se considera otimista, afirma que o Estado espanhol fará tudo para que a Catalunha não seja independente, mesmo utilizar a maior das violências.

O jornalista David Fernàndez é um dos nomes mais importantes na galáxia independentista. Foi durante anos porta-voz e deputado da CUP, o partido de extrema-esquerda anticapitalista que apoia a independência. Presidiu à comissão parlamentar de inquérito ao Caso Pujol. Este catalão cuja família, proveniente de Leão e Zamora, chegou à Catalunha em 1973, um ano antes de ele nascer em Barcelona, falou com o i num Ateneu, uma espécie de taberna e coletividade que existe em muitos bairros da Catalunha. A conversa realizou-se um dia depois da greve geral.

Vai haver uma proclamação da República Independente da Catalunha?

Vejamos o que é factual. Está convocado um plenário para dar conta dos resultados do referendo de 1 de outubro. Veremos o que resulta dessa reunião. Mas é preciso dizer uma coisa: é que é preciso ter em conta o 1 de outubro e a vontade de milhões de pessoas. Mas sabemos que em poucos dias passam-se sempre muitas coisas. Todos os dias há factos novos e pressões diversas. Neste momento em que falamos ouve–se dizer que Rajoy aceita conversar em troca de se retirar a exigência do referendo. Temos de ter calma e ser firmes no essencial. Aplicando a lei do referendo, que se aprovou no parlamento catalão, algumas coisas têm de suceder. O texto afirma que, depois de apurados os resultados, eles serão proclamados em 48 horas e, depois, serão implementados. A sessão está convocada para segunda-feira [devido à proibição do Tribunal Constitucional espanhol, passou para terça-feira]. Mas ninguém sabe o que se vai passar exatamente. Nem a Moncloa [palácio do governo de Madrid] sabe nem o Palácio da Generalitat. 

Dois dirigentes de importantes movimentos sociais independentistas, a Assembleia Nacional Catalã e a Omnium Cultura, afirmaram várias vezes, depois de 1 de outubro, que aceitariam até suspender os efeitos do resultado do referendo em troca da possibilidade de se realizar um novo referendo acordado por todas as partes.

É verdade que na discussão que é feita sobre o que se vai passar quando da comunicação dos resultados do referendo de 1 de outubro ao parlamento catalão há quem coloque como hipótese que seja introduzida uma cláusula suspensiva dos efeitos do referendo, para com isso se permitir a criação de condições de diálogo que possibilitem a realização de um referendo com todas as condições, como a esmagadora maioria da população deste país [a Catalunha] tem reivindicado há muitos anos. O dia 1 de outubro – sendo excecional pela brutalidade do Estado e pela capacidade que as pessoas tiveram de votar em grande número, apesar das condições de repressão – revelou o pior do Estado espanhol e o melhor das pessoas. Foi um referendo anómalo, por ter sido organizado em condições de semiclandestinidade. O que queríamos que fosse um referendo para poder decidir a totalidade de uma nação acabou por converter-se, também, numa luta pela simples democracia, com a urna como gramática política do conflito na Catalunha. É preciso sempre ter a capacidade revolucionária de medir forças e de ser capaz de dar alguns passos atrás para dar muitos mais à frente. Uma das grandes vantagens até aqui do independentismo é que nunca tentou dar um passo maior do que as pernas. No dia 3 de outubro realizou-se uma greve geral como este país [a Catalunha] nunca tinha visto, não só nos grandes centros e cidades como a nível local, com empresas de todos os tipos a parar e centenas de milhares de pessoas nas ruas.

É possível ser suspensa a declaração unilateral de independência, que decorre da lei do referendo de 1 de outubro, em troca de conseguir as condições políticas para um referendo acordado com todas as partes? Uma solução de uma suspensão da declaração para tentar este resultado teria a concordância de setores independentistas, como os da CUP?

Não consigo dar uma resposta. Antes de tudo, porque teríamos de fazer uma assembleia para o decidir. Aquilo que sei é que a CUP tem um imenso respeito pela maioria social deste povo e gostaria que a solução fosse a mais abrangente possível. Para nós, o que é inaceitável é qualquer solução que não passe pelas urnas e por um referendo. Não aceitaríamos que se fizesse uma espécie de negócio, não permitindo que as pessoas possam decidir o seu futuro. O 1 de Outubro provou isto mesmo. Se alguém das oligarquias catalãs tradicionais vai tentar uma solução que não passe por um referendo, pode tirar o cavalinho da chuva, a maioria social deste país nunca irá aceitá–lo. Pessoalmente – é uma opinião pessoal –, um referendo acordado com a Moncloa que fosse marcado para 2018, com uma campanha feita por gente a favor do sim e do não, parecer-me-ia uma grande solução democrática, e eu quero a democracia não só na Catalunha como em Espanha. Mas vejo essa solução muito longínqua.

Não teme que os dados económicos, a agitação bolsista e a anunciada saída de empresas e bancos importantes faça perigar o apoio à causa independentista?

Não se sabe se a queda bolsista é devida à possível declaração de independência ou à violência policial que a Catalunha viveu. É verdade que a causa catalã é também feita contra determinadas formas de exercer o poder de uma forma não democrática, o que faz com que seja natural que determinados setores do capital internacional possam ser hostis a elas. É preciso precisar quais os fatores económicos.

Tal como no tempo do referendo da Escócia, fala-se de muitas empresas e bancos que podem abandonar a Catalunha, caso haja uma declaração unilateral de independência.

Se a Caixa [a entrevista foi feita antes da decisão desse banco e de outras empresas transferirem as suas sedes fiscais para outras regiões de Espanha] quer sair, que se vá embora. Mas o problema vai ser sobretudo para eles que fazem mais de 50% dos seus negócios aqui. Não teremos esses bancos, mas teremos uma banca ética, e certamente que esse tipo de decisões implicará que muitos catalães retirem os seus depósitos e confiança nessas empresas. Não podemos é ceder à chantagem económica. Houve sempre centros de poder da burguesia catalã simbolizados pela Caixa. O jornal “La Vanguardia” e outros grandes patrões estiveram sempre contra esse processo de independência, mas há outra parte da economia. Na Catalunha há um predomínio económico das médias e pequenas empresas produtivas que são, pelo seu lado, favoráveis à independência. Mais de 90% do tecido produtivo é a pequena empresa. É uma das economias mais exportadoras na União Europeia mas, apesar disso, esta economia, com estas regras neoliberais, mantém 20% das pessoas na taxa de pobreza e 600 mil desempregados. Este processo serve também para mudar isto, para termos ferramentas políticas, económicas e financeiras que nos permitam mudar estas situações de pobreza e desigualdade.

De Puigdemont até à CUP, está toda a gente de acordo com a mudança destas políticas para se conseguir uma maior igualdade social?

Não. Não está toda a gente de acordo. As posições anticapitalistas da CUP são diferentes das da alta burguesia catalã, mas também se opõem às do grande capital de Madrid. Mas qualquer observador externo pode reconhecer que mesmo nestes campos há mudanças: os discursos dos partidos independentistas mais à direita aproximam-se cada vez mais da defesa de políticas mais próximas dos países nórdicos, que garantam algum crescimento dos apoios e da justiça social, o que há cinco anos era inimaginável. Houve muitas medidas tomadas nestes últimos tempos que seria impensável que fossem tomadas há décadas. Este é um processo democrático que tem características únicas. Tem uma maioria social progressista que lhe dá uma tonalidade muito própria. Foi em Barcelona que houve das maiores manifestações europeias a favor dos refugiados. Meio milhão de pessoas saíram às ruas contra a ideia da Europa-fortaleza e da expulsão dos refugiados. Provavelmente, não é uma ideia de que comungam todas as elites, mas a consciência de que não há país melhor sem uma maior justiça social e a capacidade de dar direitos a todas as pessoas que cá vivem é partilhada pela grande maioria da população. A paixão deste país pelo público, a educação e a saúde é evidente.

Este processo não está a contribuir para uma guinada populista de direita em Espanha?

Sim, e desastrosamente. Tem a sua lógica dialética. Uma reivindicação democrática de autodeterminação na Catalunha teve o efeito de despertar as células mais rançosas de um nacionalismo quase fascista em algumas zonas de Espanha. Ver imagens dos guardas civis de algumas localidades de Espanha a partirem entre gritos de “deem cabo deles, deem cabo deles” recorda, com naturais diferenças, alguns dos períodos mais tenebrosos da nossa história. Até este momento, na Catalunha, só a extrema-direita tem saído à rua pelo espanholismo. No dia 3 de outubro havia milhão e meio de catalães na rua, e junto a um quartel da Guarda Civil juntaram-se 500 neonazis com bandeiras de Espanha. Isto é inquietante. Mas não há só lógicas binárias e países homogéneos. Espanha é também o bairro operário de Vallecas e os bairros de Salamanca.

Há setores políticos que criticam o processo de independência da Catalunha afirmando que não faz falta mais um país e que a dinâmica nacionalista acaba por contagiar todo o discurso e dinâmica política, secando a possibilidade de haver um discurso e lutas com características de classe e de outro tipo.

São leituras que a mim me surpreendem. Dizer que reclamar a autodeterminação dos povos não é de esquerda é, para mim, muito estranho. Há muitos pensadores, desde Lenine até muitos outros, que sublinham a importância deste tipo de luta. Para além de tudo isso, há a questão concreta: em nome de um suposto internacionalismo, tenho de assumir um Estado que nega a nossa existência e nos agride quando quer? Essa é a fotografia do 1 de Outubro: um Estado que, perante as reivindicações das pessoas, apenas tem a agressão policial como argumento. Eu insisto que a CUP é um projeto de esquerdas anticapitalistas que trabalha com os trabalhadores e que faz um debate sobre o que deve ser a autodeterminação e a democracia, como fazemos todos os que estamos no sul da Europa. O que nos preocupa é que alguns digam disparates, que em nome da unidade da classe trabalhadora nos vendam a unidade de Espanha. Isso, sim, é um nacionalismo que não é de esquerda. Nós lutamos ao lado dos trabalhadores da Grécia, Itália e outros sítios, apesar de estarem em Estados diferentes. As lutas não vão deixar de ser transfronteiriças por existir a Catalunha. Não vai deixar de haver luta de classes. Claro que há outras fontes de injustiça e de poder ilegítimo que não se esgotam na luta pela autodeterminação da Catalunha, mas esta luta não deixa de ser importante para quem vive numa situação de ser impedido de decidir o seu futuro. Temos 35 leis aprovadas que o Estado espanhol chumbou. São leis importantes, algumas com uma marcada carga social e política, como a da pobreza energética, para apoiar as famílias com poucos recursos, ou a dos depósitos bancários. Mas não nos deixam governar. Há uma esquerda espanhola absolutamente presa ao nacionalismo espanhol. Nós, na CUP, não somos nacionalistas, somos independentistas. Reclamamos a liberdade política para o nosso povo poder determinar como quer decidir e construir o seu futuro. A construção de comunidades complexas e multiculturais é um desafio político.

No entanto, no referendo só votaram cidadãos espanhóis, e não os imigrantes que vivem aqui.

Com a opinião contrária da CUP, que defende que toda a gente que vive na Catalunha tem de ter os mesmo direitos. O problema é que isso exigia, e nós defendíamos, que antes do referendo se fizesse uma nova lei eleitoral. Este é um país de imigração. Mais de 70% dos catalães vieram de outros lados. Eu e a minha família, por exemplo, que estamos todos no processo independentista, viemos em 1973 de outra zona de Espanha. Aqui, nos últimos 15 anos, chegaram 1,5 milhões de pessoas que falam 300 línguas diferentes. A independência da Catalunha feita por todas estas pessoas é uma bofetada na cara dos nacionalismos racistas e excludentes que dominam o Estado espanhol e que têm tido um enorme desenvolvimento, nos últimos anos, na Europa.

Não está otimista?

Sou realista. O Estado espanhol fará tudo, mesmo usar a maior das violências, para nos impedir de ganhar a independência. Mas com o que se passou a 1 de outubro, este país nunca mais será o mesmo. A violência que o Estado espanhol usou ajudou a este corte. Agora há muita gente que não olha da mesma maneira para as coisas como olhava antes. Este país, de alguma maneira, já se foi de Espanha.