May: governar até que a voz lhe doa

Há duas coisas que matam carreiras políticas: o ridículo e a pena.

Esta semana, no mais improvável dos palcos, a conferência anual do Partido Conservador, a primeira-ministra Theresa May foi implacavelmente submetida a ambos. O momento ensaiado para a sua afirmação abriu ainda mais o campo para a corrida à liderança dos Tories. 

Tudo o que podia ter acontecido durante o seu discurso ao partido e à nação aconteceu mesmo. 

Primeiro a tosse persistente. As maiores propostas políticas eram travadas por goles de água em garganta seca. Os apoiantes aplaudiam. As melhores tiradas do texto eram assassinadas pela voz que fugia fininha. Os opositores, na primeira fila, disfarçavam o sorriso cínico. A governação Tory proponha um novo ‘sonho britânico’ mas a imagem era de pesadelo. Por mais Strepsils que Philip Hammond deixasse no púlpito, May caíra azarada na metáfora de um país engasgado. 

A líder conservadora bem podia esforçar-se para apontar o discurso ao adversário trabalhista Jeremy Corbyn. Mas como dizia Churchill, na infinita sua sabedoria, os inimigos estavam mesmo sentados ao seu lado. No momento mais errático do discurso, o comediante Lee Nelson salta da primeira fila e oferece um P45 (formulário de despedimento) a May. E acaba o número a piscar o olho a Boris Johnson, o ‘padrinho do Brexit’, chefe da diplomacia britânica e rival de May na corrida à liderança em 2016. 

Como se tudo isto já não fosse demasiado desastroso, eis que o discurso de May ainda sofre com a desintegração do palco: «Construir um país que funciona para todos», o motto gravado no cenário, foi perdendo letras… e sentido. 

Considerado ‘um desastre de relações públicas’, os epifenómenos no discurso esvaziaram a componente política sólida e criaram mais ruído sobre a disputa da liderança. 

Quanto à parte programática, May tentou recalibrar o posicionamento dos conservadores compaginando uma defesa vigorosa do mercado livre com uma intervenção estatal desenhada para entrar onde o primeiro falha. Como a habitação, a educação e a energia, áreas em que May fez propostas políticas concretas. Com um duplo objetivo: retirar espaço a Jeremy Corbyn, por um lado, e reconquistar a simpatia de uma fatia do eleitorado, nomeadamente jovem, que está divorciada dos conservadores, por outro. Insistiu na sua visão de ‘Sonho Britânico’, um país em que as gerações de amanhã vivam melhor que as de hoje. Nesse sonho o Brexit foi remetido para um lugar secundário. 

Ora é precisamente o divórcio com a UE que está a acelerar a contagem de espingardas internas. A questão que cruza o partido é que tipo de Brexit e em que horizonte temporal é que ele é alcançado. Os conservadores dividem-se na abordagem, com Boris Johnson, abertamente desleal à líder, a capitanear os que querem um Brexit rápido e eventualmente desordenado. Boris sente que longos períodos de transição, como os dois anos propostos por May, podem reforçar os ‘remainers’ e reabrir a questão da separação. 

Johnson está a reposicionar-se para a corrida à liderança, na qual deverá ter a companhia de Amber Rudd, ministra da Administração Interna, e de candidatos de uma nova geração. Da lista fazem parte nomes como Jacob Rees-Mogg (um provocador mais à direita), James Cleverly (um antigo militar do exercito com dois anos de parlamento) e Ruth Davidson (responsável pelo ressurgimento eleitoral dos Tories na Escócia).   

Em Manchester, May pediu unidade e garantiu que não desistirá de liderar o partido e o país. Com muitas dificuldades, acabou o seu discurso. Resta saber se a sua voz terá força para acabar a legislatura.