Pedrógão. Gritaram por Portugal as crianças que viram o fogo destruir a terra

Foi um dia diferente, para se sentirem apoiados, integrados. De manhã, voluntários da Efacec juntaram-se à Associação de Apoio às Vítimas de Pedrógão Grande e distribuíram material escolar a 534 alunos afetados direta ou indiretamente pelo fogo que devastou três concelhos. À tarde, 200 estudantes viajaram para Lisboa para assistir ao Portugal-Suíça. Não se falou…

“Lição 15 e 16, 10 de outubro de 2017. Sumário: conclusão da realização da ficha de educação literária. Leitura e análise da fábula ‘O burro carregado de sal’, de Esopo. Classe de palavras: o nome.” O giz sobre a ardósia dita o conteúdo da aula de Português do 5.o A. Passa pouco das 9h na Escola C+S Miguel Leitão de Andrada, do Agrupamento de Escolas de Pedrógão Grande. O toque foi às 8h30, por isso os trabalhos já vão adiantados quando Américo Lourenço, adjunto da direção, bate à porta da sala com uma visita.

Do outro lado espera a vez de entrar um grupo de voluntários da Efacec. Saíram pelas 6h30 do Porto, onde a empresa tem sede, para vir entregar em mãos o fruto do trabalho dos últimos tempos: por umas semanas, os transformadores elétricos e outras tarefas que os ocupam no dia-a-dia passaram a ser embalados por um projeto de solidariedade. Depois de lançarem uma campanha de recolha de donativos logo depois do fatídico 17 de junho, num valor que a administração da empresa duplicou, procuraram saber junto dos concelhos afetados o que poderia fazer falta. Da Associação de Apoio às Vítimas de Pedrógão Grande, que junta familiares das pessoas que perderam a vida no fogo, surgiu a proposta: apoiar crianças afetadas direta e indiretamente com kits escolares, preparados com a orientação das escolas consoante as necessidades de cada ciclo.

Foi esse o desafio aceite e, depois de uma maratona para montar cada kit, a entrega aconteceu na terça-feira. A aula de Português da escola básica e secundária de Pedrógão foi a primeira paragem. Sofia Esteves, a professora, foi colocada na escola este ano depois de uma primeira passagem por ali, há 14 anos. Ficou impressionada com a paisagem, mas procurou vir com o espírito positivo, um pouco mais do que o habitual em cada novo ano letivo. E em cada aula vai tentando criar pelo menos um espaço de diálogo ao início, para poder ouvi-los falar descontraidamente, rir um pouco. Desta vez, o tema foi o sal, que o burro carrega na fábula de Esopo, como se salga o bacalhau e temas assim, para dar o tom para a aula.

A cada aluno, além do material, os voluntários oferecem um postal com uma mensagem manuscrita. Na frente, o mote da iniciativa: “Apoiamos o futuro e os sonhos dos pequenos heróis de Pedrógão Grande.” Na curta passagem por cada sala não se fala do fogo, não é preciso. José Silva e Sandra Pombo, do departamento de comunicação da Efacec, dirigem palavras de homenagem aos alunos e um desejo: que aproveitem ao máximo o novo ano e encham os cadernos de sonhos e trabalhos, para um futuro melhor.

Recomeçar numa comunidade de luto Nesta escola, uma funcionária perdeu a mãe e a filha no incêndio e, de uma forma ou outra, há também crianças afetadas. Perderam familiares ou conhecem feridos, perderam casas suas ou de avós. No início das aulas, ali como em todas as escolas dos concelhos mais afetados, o assunto surgiu em conversa e há apoio psicológico reforçado. Nos últimos dias, com o fogo que tornou a andar próximo em Avelar, Ansião, voltou alguma ansiedade, conta um funcionário. Não afeta todos os alunos da mesma forma, mas nota-se que alguns ficam mais agitados. E é preciso explicar-lhes que está tudo bem, que estão seguros.

É uma manhã fresca em Pedrógão Grande e há uma névoa a desfazer-se que não se percebe se é nevoeiro ou fumo. Cheira a queimado, restos desse fogo que deflagrou na sexta-feira passada, mas também ainda dos muitos hectares ardidos em junho, conta quem é dali. Pelo IC8 e pela nacional 236-1, onde morreram 47 pessoas naquela noite de sábado, os rebentos de eucalipto que não tardaram a surgir no pé das árvores queimadas já passam um metro de altura. Às vezes prolongam-se pelo tronco das árvores até ao topo. É este o caminho para o agrupamento de Escolas de Castanheira de Pera e depois para as escolas de Figueiró dos Vinhos, onde os voluntários da Efacec continuam durante a manhã a entrega de um total de 534 kits de material escolar. Este tipo de iniciativas não são uma novidade na empresa, que tem um programa que permite a cada funcionário descontar um euro do salário por mês, valor que, no final do ano, também é duplicado pelo grupo e canalizado para instituições. Desta vez, pela impressão que lhes fizeram as notícias do que se passou ali em junho, quiseram fazer algo diferente, mais próximo.

O grupo de voluntários é acompanhado por Nádia Piazza e Ana Costa, da Associação de Apoio às Vítimas de Pedrógão Grande. Ana, a quem todos chamam Cati e que em julho escreveu a Marcelo Rebelo de Sousa a questionar a falta de apoios às vítimas, perdeu a irmã de 35 anos. Nádia perdeu o filho de cinco anos no fogo, que morreu junto do pai, o seu ex-marido, e outros familiares. Apesar de todas as escolas terem, de uma forma ou outra, memórias associadas para as duas, acompanham a comitiva da Efacec com um sorriso. Até algum nervosismo, ou não fosse esta a primeira iniciativa do género da associação, que querem que tenha um impacto objetivo na região.

A escola do 1.o ciclo do ensino básico de Castanheira de Pera foi construída pelo ex-marido de Nádia, que era engenheiro civil na câmara. Ana também estudou em Castanheira, ela e a irmã, até irem estudar para Coimbra. Já em Figueiró dos Vinhos recordam-se os dias do fogo: o agrupamento de escolas reabriu na terça-feira depois da tragédia e esteve na primeira linha do apoio. “Quisemos tirar as crianças de casa”, lembra Sandra Pedro, vice-presidente do Agrupamento de Escolas de Figueiró dos Vinhos. Atualmente, a maioria das crianças está bem, mas há alguns casos a precisar de mais apoio. O filho de Nádia iria começar a primeira classe no agrupamento e a turma teve apoio.

Esta semana, para reforçar a ajuda, chegou ao agrupamento uma psicóloga especialista em risco. Ângela Conde admite que o acompanhamento será necessário ao longo de vários meses. É de Miranda do Corvo, que também teve fogo este verão, mas admite que ficou impressionada com a paisagem que encontrou. “Neste momento, a paisagem impressiona mais quem vem de fora”, assente Fernanda Dias, diretora do agrupamento. Ângela tem-se deparado também com vulnerabilidade. Esta semana, bastou uma vez o toque da sirene dos bombeiros para encontrar um olhar mais ansioso. E também ela confirma que o cheiro a fumo dos últimos dias recuperou memórias que é normal que existam. O objetivo do trabalho que tem pela frente, no qual espera envolver alunos, pais e funcionários, é fazer com que não se transformem em traumas.

A caminho de Lisboa Entregues os kits, é hora de rumar a Lisboa. Com o apoio da Presidência da República, da Fundação Benfica, do Instituto Português do Desporto e da Juventude e dos municípios afetados pelo fogo, e também da Efacec, a associação garantiu bilhetes e companhia a cerca de 200 estudantes para assistirem ao Portugal-Suíça.

À hora da partida não faltam cachecóis e outros adereços. Na viagem de autocarro, a agitação é a de uma qualquer visita de estudo de adolescentes. Num dos quatro autocarros canta-se Dragon Ball ou sensações mais recentes, como o hit “Cheguei” de Ludmilla.

Ao sair de Figueiró, enquanto as janelas do autocarro dão para as encostas castanhas – os eucaliptos a perder de vista, como cabelos, aponta Nádia –, alguns lembram quando o fogo andava ali e passaram por ele. Quando se fala desses dias com um pequeno grupo de adolescentes, os rostos ficam solenes. Sabem quem perdeu quem e o quê, as dificuldades em apagar o fogo. Falam das conversas sobre os apoios, que quem precisa nem sempre os está a receber e que há quem não precise tanto e receba. Lembram que houve professores que ligaram para saber se estavam bem. Não se vão esquecer, diz um rapaz mais velho, mas não é preciso continuar a falar disso.

Já em Lisboa, duas motas batedoras dão passagem aos autocarros, com a dose correspondente de entusiasmo a bordo. Quando chegam ao Estádio da Luz, o ambiente já é de festa. Dão-se as instruções do que pode e não pode entrar no estádio e preparam-se para seguir até ao lugar que lhes está reservado, com vista ampla para o relvado. Antes disso há uma foto de grupo. Com os cachecóis no ar, Nádia, Ana e os voluntários no meio deles gritam Portugal com esperança, quase uma metáfora para o dia.

Haveria de funcionar. Primeiro com um autogolo de Djourou e depois com uma bola certeira de André Silva.

No final, com Portugal a caminho da Rússia, perguntamos a um grupo pequeno de Castanheira de Pera a quem dedicam a vitória. António, de 12 anos, dedica-a ao pai, bombeiro. “É um herói e gosto muito dele.” Sara, 10 anos, insiste em falar: quer dedicá-la à melhor família do mundo. Carolina, de 11 anos, lembra Gonçalo Assa, o bombeiro de Castanheira que morreu no combate ao fogo. Também Catarina, de 11 anos, quer dedicar a vitória à família, aos amigos e ao Assa. No final de um dia cheio, é esse o pensamento. “Sempre que ganhava o Benfica ou Portugal, fizesse chuva ou sol, o Assa ia festejar a vitória para a rotunda da Nora, lá em Castanheira”, terminam.