TRAÇA. História(s) são todas

À segunda edição, a TRAÇA – Mostra de Arquivos Familiares muda-se para a Madragoa para três dias de viagem por uma série de filmes de família – e um conjunto de performances construídas sobre essas coleções

“Perder uma fotografia é perder um momento duas vezes.” Palavras de Daniel Jonas no poema “Nostalgia” (“Passageiro Frequente”, ed. Língua Morta, 2013) que hão de servir tão bem aqui quanto as de Luísa Crick depois do revisitar das imagens de arquivo da sua família que a levou à TRAÇA – Mostra de Arquivos Familiares, que nesta segunda edição se espalha, entre hoje e domingo, pelo bairro da Madragoa: “Se uma imagem vale mil palavras” – diz ela a quem pertence uma das três coleções particulares que deram origem à programação – “façam-se as contas a 24 imagens por segundo”.

Pois não será sobre fotografia a TRAÇA, antes sobre os filmes de família que foram chegando ao espólio do Arquivo Municipal de Lisboa-Videoteca – alguns deles de origem desconhecida. “Imagens produzidas em casa, normalmente feitas para serem vistas aí”, notam as programadoras, Inês Sapeta Dias e Fátima Tomé, que numa programação de três dias as recuperam num gesto de trazer o privado para a história da cidade. Histórias dentro de histórias para ajudar a construir “uma outra história”. O privado e “o obliterado, o censurado, o que não constitui o acontecimento” – o banal que de banal terá pouco, havemos de perceber, até porque são justamente os arquivos de origem desconhecida – filmes perdidos, esquecidos e reencontrados, a fazerem-nos questionar que relação temos com a memória afinal – que Maria Filomena Molder comentará, nas projeções por vários locais do bairro, sobre as quais também Daniel Jonas fará leituras encenadas.

Uma outra história que se constrói num desmultiplicar de olhares e de vozes que na TRAÇA aparece como a face visível do trabalho que nos últimos anos vem fazendo a Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa, a partir de registos que remontam à década de 1930 e que viajam no tempo, atravessando formatos, dos 9,5mm às VHS da década de 1990 em que nos chegam, por exemplo, os arquivos de Acácio de Almeida que, em conjunto com os de Maria Manuela de Sousa e de Luísa Crick, constituem o ponto de partida para a programação desta segunda edição da mostra que acontece a cada dois anos num novo bairro de Lisboa.

Para domingo à noite está marcada na Madragoa uma conversa/performance a partir de um conjunto de arquivos de vídeos familiares, mas isso será só o final. Entretanto, a partir de hoje, um conjunto de artistas convidados em parceria com o festival de artes performativas Alkantara fazem-se também arquivistas, historiadores, ao apresentar uma série de performances/espetáculos construídos a partir dessas três coleções um pouco por todo o bairro, do Centro Comunitário da Madragoa aos Vendedores de Jornais Futebol Clube.

Além de filmes de família projetados por toda a parte, haverá então para ver ainda “Fantasmas”, do brasileiro Alex Cassal, “Até eu descobrir o voo no mar”, de Isabel Abreu, a partir de depoimentos recolhidos na Madragoa e de uma história de Dulce Maria Cardoso, “Eu fui mexer nas coisas todas”, de Jorge Silva Melo e Miguel Aguiar, a partir de um depoimento de Maria Manuela de Sousa, e ainda “Rua de São Félix”, de Raquel André, “De um lado e do outro”, de Sofia Dias e Vítor Roriz, e “Histórias de um amor”, de Sofia Dinger.

“Estamos ainda no início deste trabalho e se são muitos os filmes que nos têm chegado (temos uma recolha aberta em permanência) continuam também a ser muitas as imagens perdidas”, sublinham as programadoras, lembrando estatísticas que estimam que apenas 1% dos filmes de família em todo o mundo estão “a salvo”. “Continuamos a ouvir pessoas dizerem-nos que os seus filmes não têm interesse, continuam a chegar–nos latas de película compradas em feiras, encontradas na rua, descartadas por aqueles a quem pertenceram”, dizem elas que veem como “misteriosas as razões deste descarte”.