Proteção Civil deu ao governo informação que não corresponde à realidade

Comissão técnica desmonta alguns argumentos da Autoridade Nacional de Proteção Civil e condena falta de capacidade de análise dinâmica

“Tecnicamente, o incêndio de Pedrógão Grande passou à fase de ataque ampliado (ATA) às 16h13.” Mas entre o tecnicamente e a realidade vai uma grande distância. No relatório ontem entregue ao parlamento, onde é escalpelizado o combate ao fogo que vitimou 64 pessoas em junho, os peritos assinalam que os dados fornecidos ao governo pela Autoridade Nacional da Proteção Civil depois da tragédia não correspondem ao que se verificou de facto. No relatório de 6 de julho remetido a Constança Urbano de Sousa, a ANPC informou que pelas 16h43 – portanto, duas horas depois do início do fogo e quando já deveria haver um reforço de meios pelo menos há meia hora, uma vez que o incêndio não tinha sido dado como dominado nem estava em resolução – estavam acionados 167 operacionais, 48 veículos e dois meios aéreos. Na realidade, os meios no terreno estavam muito longe disso. “Em rigor, e sem prejuízo de estarem de facto mobilizados aqueles meios, àquela hora estavam em operação 68 operacionais, 22 veículos e não estava meio aéreo algum a operar naquele incêndio.”

Os peritos sublinham que às 16h13, quando as regras impunham que o incêndio passasse a esta fase ATA, “não se verificou incremento algum de meios, como seria expetável”. Mas as decisões estratégicas que parecem não fazer sentido para os peritos não ficam por aqui. Nessa altura foram mobilizados dois grupos de reforço de incêndios florestais (os GRIF) de Santarém e Castelo Branco, o que “faz sentido”, uma vez que não era possível mobilizar mais meios de Coimbra por estarem ocupados com o fogo de Góis. Porém, às 17h50 são chamados os GRIF de Setúbal e Évora, que chegaram um às 23h e o outro já só às 3h18 da madrugada de domingo. E é aqui que surge a perplexidade da comissão técnica: é que, apesar de os avisos meteorológicos não terem levado a um reforço de meios nos concelhos que viriam a ser o epicentro da tragédia, a Proteção Civil determinou que ficaria posicionado em Castelo Branco o Grupo de Reforço para Ataque Ampliado (GRUATA) da Força Especial de Bombeiros (FEB), em caso de necessidade neste distrito colado a Leiria e que estava sob aviso vermelho. “Não se encontram razões explícitas que poderiam ter justificado a não mobilização deste grupo. Na verdade, a partir das 16h13, quando se passou à fase de ATA, e sabendo que o GRUATA da FEB estava a cerca de uma hora do incêndio, a mobilização desta força em tempo útil poderia ter sido diferenciadora e ter contribuído de forma objetiva para a contenção do incêndio de Pedrógão Grande”, lê-se no relatório.

Os peritos assinalam mesmo que este grupo e um segundo grupo da FEB só foram chamados às 22h30 e chegaram ao fogo às 3 horas de domingo, “quando o incêndio já tinha assumido uma enorme dimensão e as fatalidades já tinham ocorrido”. Em suma, “são mobilizados vários grupos de reforço, de vários distritos, e o único formatado, posicionado num distrito vizinho, com estado de prontidão imediato, não é mobilizado”.

As inconsistências não ficam por aqui. Se, na informação remetida ao governo após a tragédia, a ANPC diz que, pelas 16h43, estavam acionados dois meios aéreos, os peritos contrapõem agora que, entre as 16h03 e cerca das 18h, “um período de cerca de duas horas na fase mais crítica do incêndio, não esteve nenhum meio aéreo a operar no incêndio de Pedrógão Grande”.

Os meios só seriam reforçados depois da notícia da tragédia e só nessa altura foram ativados os acordos bilaterais com Espanha e Marrocos. Estiveram no combate ao incêndio, que foi dominado a 21 de junho, 175 corpos de bombeiros de todo o país.

A comissão técnica assinala ainda que não existem motivos para não ter sido reforçado o dispositivo em Pedrógão face aos avisos meteorológicos, estando Leiria sob aviso amarelo e Castelo Branco sob aviso vermelho. “Aqui também se exige ao planeamento uma capacidade de análise dinâmica (…) Pedrógão dista da mesma cerca de 40 km (em linha reta) para o interior, situando-se a menos de 1 km do distrito de Castelo Branco e a menos de 5 km do distrito de Coimbra, pelo que os valores que refletem a sua situação meteorológica são sempre muito mais próximos dos da região interior central do que dos valores próximos do litoral.” E é criticada outra leitura feita posteriormente pela ANPC no relatório entregue ao MAI, onde indicou que como não havia incêndios em Pedrógão há dez anos, a zona não era historicamente relevante. “Além de não haver rigor factual na afirmação, a não ocorrência de incêndios numa série de anos não deverá constituir fundamento para aliviar o planeamento operacional e a prevenção”, diz a comissão.