Operação Marquês. O papel que prova a corrupção

Um pequeno papel escrito pelo punho de Ricardo Salgado é uma das ‘provas’ mais chocantes da corrupção. Nele, o banqueiro escreveu verbas a atribuir a várias figuras – que depois foram de facto contempladas com transferências nas suas contas bancárias, como a investigação apurou. Este texto descodifica esse processo.

Um manuscrito saído do punho do próprio Ricardo Salgado, líder do BES, com a aparente distribuição de verbas para pagamento de 55 milhões de euros de ‘luvas’ a arguidos da Operação Marquês, é considerado pelo Ministério Público uma das peças essenciais para a acusação.

O documento – um apontamento rascunhado por Salgado num pequeno papel dirigido a Amílcar Morais Pires, seu braço direito na gestão do BES – tem a indicação de «55 M» (55 milhões de euros), que são depois repartidos por três retângulos: um onde aparece escrito «2×7,5», outro onde se lê «1×10» e o último onde está «2×20». Ao fundo do papel aparece ainda, manuscrita pelo banqueiro, a referência «+ 10» – o que, somado à verba inicial, totaliza 65 milhões de euros, que é precisamente o resultado da soma das quantias inscritas nos três retângulos.

O rascunho apareceu aos investigadores da Operação Marquês entre os papéis enviados pelas autoridades suíças em resposta a uma carta rogatória do MP solicitando informação sobre movimentações dos arguidos em contas bancárias por eles detidas nesse país, no qual o GES também tinha sociedades sediadas e escritórios.

Depósitos bancários coincidem com papel
As contas bancárias de alguns futuros arguidos da Operação Marquês confirmarão, de facto, as quantias rascunhadas por Salgado no papel, coincidindo com transferências feitas pela ES Enterprises (‘saco azul’ do GES) em 2010, 2011 e 2012. 

Hélder Bataglia, presidente da ESCOM (empresa destinada ao investimento do BES em África), recebeu, em novembro de 2010, 15 milhões de euros, na conta da sua offshore Green Emerald Investments, no Crédit Suisse em Zurique, repartidos em duas tranches de 7,5 milhões – o que corresponde ao apontado por Salgado no primeiro retângulo.

Junto ao retângulo «1×10», o presidente do BES acrescentou «Sing», que o MP suspeita tratar-se de Singapura, em cuja delegação local do banco suíço UBS o presidente executivo da PT à época, Zeinal Bava, detinha uma conta pessoal. E, de facto, a ES Enterprises transferiu para essa conta 10 milhões de euros em 20 de setembro de 2011 (refira-se que Bava recebera antes, em dezembro de 2010, também da ES Enterprises, a quantia de 8,5 milhões de euros).

Para lá destes pagamentos, Henrique Granadeiro, chairman da PT, recebeu da ES Enterprises, ao longo dos anos de 2010, 2011 e 2012, pagamentos totais na ordem dos 17,5 milhões de euros, que foram depositados na conta da sua offshore Granal no Banco Pictet, em Zurique, Suíça.

Por sua vez, o próprio Salgado recebeu do ‘saco azul’ do GES, na conta da sua offshore pessoal Savoices, no Crédit Suisse, em Zurique, a 21 de outubro de 2011, a quantia de 4 milhões de euros, que seriam depois transferidos para a conta da mesma empresa e do mesmo banco em Singapura.

Luvas referiam-se à PT 
A convicção do MP é que estes pagamentos correspondem a ‘luvas’ pagas aos diversos agentes que influenciaram a operação de venda da participação da PT na operadora telefónica brasileira Vivo, precisamente no ano de 2010 – incluindo o primeiro-ministro José Sócrates, pela decisão de dar a indispensável luz verde à operação, já que o Estado detinha então uma golden share que lhe atribuía uma capacidade decisiva de intervenção. 

A venda da Vivo, que Sócrates fez depender da entrada da PT noutra operadora brasileira (que viria a ser a Telemar/Oi, um negócio ruinoso que afundou a empresa portuguesa), gerou na altura mais-valias consideráveis para os acionistas da telefónica nacional, em particular para o BES, um dos seus maiores detentores de capital.

A reforçar a convicção dos investigadores, por baixo do apontamento referente aos 55 milhões de euros a distribuir, Ricardo Salgado escreveu, no seu manuscrito, a sigla «PT», associando a verba à operadora. 

E a confirmação desta suspeita viria quando os investigadores verificaram que, nas contas da ES Enterprises, o seu contabilista – o suíço Jean-Luc Schneider – incluiu também as letras «PT» junto da referência a cada um dos pagamentos feitos nesse período aos arguidos já mencionados. Os homens do GES atribuíram até um nome de código à suposta distribuição de ‘luvas’ resultantes da venda da Vivo: ‘CEL_2010’ (embora alguns documentos desta operação também contivessem a designação genérica ‘BRIDGE_2010’).

Numa folha de cálculo relativa à operação CEL_2010, também resultante da carta rogatória enviada para a Suíça, existe uma distribuição de verbas pelos vários intervenientes, entre 2010 e 2012, que totaliza 55 milhões de euros (desdobrados nos 15 milhões inicialmente atribuídos a Bataglia, os 18,5 milhões para Bava, os 17,5 milhões para Granadeiro e os 4 milhões para Salgado), indo assim ao encontro do apontamento manuscrito pelo presidente do BES.

Dinheiro de Bataglia para Sócrates
O MP suspeita que parte substancial da verba recebida por Hélder Bataglia tinha José Sócrates como destinatário final. 

Com efeito, o homem da ESCOM aplicou 8 milhões de euros num negócio fictício de aquisição de um lote para construção em Luanda, chamado Kanhangulo, que permitiu a entrada dessa verba nas contas do Grupo Lena (por incumprimento contratual presumivelmente deliberado). E essa verba foi depois entregue ao longo do tempo ao empresário Carlos Santos Silva. Mais tarde, este colocou essa verba em Portugal, para que Sócrates pudesse dispor dele sempre que necessitasse – como de facto sucedeu.

Entretanto, em declarações prestadas em Lisboa em Março deste ano, Bataglia também admitiu ter feito transferências de 12 milhões de euros para Carlos Santos Silva, a pedido de Ricardo Salgado, explicando como conheceu o empresário amigo de José Sócrates e José Paulo Bernardo Pinto de Sousa, primo do ex-primeiro-ministro e também ele um alegado testa-de-ferro de José Sócrates. E explicou o porquê de nunca ter feito perguntas sobre as transferências: «Não se dizia não ao dr. Ricardo Salgado naquela altura». 

Acrescente-se que Salgado, além dos 4 milhões de euros recebidos do saco azul do GES, terá auferido 3,75 milhões que Bataglia transferiu para a Savoices (dos 15 milhões recebidos da ES Enterprises), e mais cerca de 4 milhões transferidos por Granadeiro (também do dinheiro que recebeu da ES Enterprises) para a sociedade offshore Begolino, controlada por Salgado e pela sua mulher, Maria João Calçada Bastos.

Bataglia e Salgado:
explicações diferentes

Nos interrogatórios a que foram submetidos no âmbito da Operação Marquês, os envolvidos reconheceram o recebimento destas verbas mas apresentaram versões díspares para a sua origem. 

Ricardo Salgado, inquirido no início deste ano, alegou que o pagamento a Bataglia tinha que ver com um acordo assinado entre ambas as partes em 2005 para a «obtenção de concessão de direitos de exploração de petróleo em Angola», a «concessão de direitos de exploração mineira no Congo» e a «expansão da atividade imobiliária quer em Angola quer em Brazzaville». 

E especificou: «Aquilo é um acordo ‘chapéu’, no qual estavam definidas todas aquelas atividades. O Hélder Bataglia sempre foi muito cioso de tudo aquilo que ele poderia receber do grupo [GES], e nesse acordo teria direito de receber fundos para o desenvolvimento dessa atividade e depois ter os seus success fees [comissões pelo êxito das operações]. Este acordo de 2005 estende-se até 2010. Acontece que, com as boas relações que estava com o governo de Angola, o Hélder Bataglia diz-nos que vai obter licenças para blocos de petróleo, e então aparecem seis blocos, salvo erro, dois onshore, em Angola, e 4 offshore. Só tivemos uma participação […] num bloco de petróleo […], mas tivemos que pagar ao Hélder Batalha montantes consideráveis para efeitos dessas concessões. É uma questão perfeitamente correta, e que pagámos porque estávamos convencidos de que as coisas estavam a acontecer. […] O Hélder Bataglia era o responsável por isso e nós acreditávamos nas pessoas».

Mas o homem da ESCOM, falando também de um contrato em 2005, avançou com uma justificação um pouco diferente para o recebimento dos 15 milhões: «Tentei também encontrar, por acaso, no Congo um bloco petrolífero que era uma coisa importante, mas não consegui, porque depois houve uma multinacional que ficou com esse bloco […]. O contrato reporta-se ao Congo como está escrito e reporta-se a uma parte não escrita que é subjacente que tem a ver com Angola pagar a dívida que tinha, não só ao Estado português, como a todos os bancos aqui em Portugal [incluindo o BES], tendo a dívida ficado a zeros em 2004».

Nas suas declarações, Bataglia falou ainda de um banco (associado ao BES) que constituiu no Congo. Ora, nas suas declarações, Salgado afirmou que não pretendia criar uma filial do BES no Congo, ao contrário do que Bataglia lhe propusera (e veio a concretizar), pelo que haveria pouca lógica em pagar-lhe comissão por essa iniciativa.

As justificações de Bava
Quanto aos pagamentos a Zeinal Bava, Salgado adiantou que se inseriam numa «operação fiduciária, que se destinava a constituir a âncora para segurar os colaboradores portugueses que fossem para o Brasil», explicando que «não se sabia exatamente» qual o montante de tal operação «pois não se sabia o número exato de pessoas que iam para o Brasil; falava-se de um montante que podia chegar a 20 ou 30 milhões».

Também aqui o MP foi confrontado com uma explicação distinta por parte de Bava: «Isto não ficou escrito. O que acontece é que eu entrei na PT, fui nomeado presidente, a golden share não cai, o contrato de concessão não cai, o tempo vai-se passando, acontece o evento corporativo da Vivo, […] abraça-se o projeto da Oi e o doutor Ricardo Salgado, nessa altura, diz: ‘Então, quero continuar ainda mais com o vosso apoio, em termos mais executivos.’ E eu nessa altura disse: ‘Olhe, nós temos que formalizar isto. Nós precisamos de formalizar isto, porque o dinheiro não me foi dado, não é meu’. [Esse dinheiro] não interfere minimamente com nenhuma das decisões que eu tomei. Quero deixar absolutamente claro que nunca me senti minimamente condicionado em nada que fiz na PT nesse tempo, por causa disso. Apareceu o fiduciário, que é um termo legal, acho eu. Em que me é feita confiança do dinheiro para um objetivo que estava definido, que era comprar uma participação na PT, para me comprometer a mim e à minha equipa para o projeto. E, caso não fosse executado, eu teria que devolver este dinheiro, em termos e condições a definir».

As declarações de Granadeiro
Também no que respeita a Henrique Granadeiro as explicações divergem. Afirmou Salgado que os pagamentos ao chairman da PT «têm a ver com uma colaboração que o Granadeiro deu ao grupo, muito importante, em anos anteriores, antes de ir para a PT, na reorganização da área agrícola do grupo relacionado com a [Herdade da] Comporta [em Troia] e por ter resolvido um problema ao grupo na área industrial». E acrescentou: «A [ES] Enterprises comprou uma participação numa exploração agrícola importante do Henrique Granadeiro, que ou é a de Reguengos ou de uma parte que ele tem no Alentejo. Ele também deu apoio à fábrica de descasque de arroz na Comporta, também foi importante».

Ora Granadeiro disse aos inquiridores: «Eu ainda estive fugazmente como administrador da Espírito Santo Resources [outra empresa do GES]. Com o estudo que eu fiz, e sobre a estratégia para a Comporta, envolvendo a parte agrícola, a parte imobiliária… Não sou especialista no setor, mas a nova agricultura que se começou a praticar na Comporta foi toda instalada sob a minha inspiração… Isso foi um serviço que eu fui prestando. Que começou praticamente na altura em que entrei para a PT, mas que tinha depois a execução. A Comporta era um reino em que toda a gente mandava, aquilo era a aldeia dos macacos, e depois não tinham um ponto estratégico e mantinham-se ligados ao arroz, como sempre se tinha feito. E eu comecei a fazer um arroz especial, sobretudo em termos de protocolo de produção, que é o problema dos pesticidas e dos fertilizantes, por forma a poder fazer arroz para comida de bebé, que depois fornecíamos para várias indústrias».

Interrogado sobre os seus conhecimentos na área da produção rizícola, Granadeiro adiantou, hesitante: «Tinha. Eu nunca fiz arroz, qualquer arrozeiro sabe lá fazer. O problema é saber quais são, digamos, as coisas. E isso não é ciência nuclear». Quando os inquiridores lhe perguntaram qual era a marca do arroz assim produzido, respondeu: «Ah, não faço ideia».

Acrescentou que recebeu dinheiro da ES Enterprises ainda por outras tarefas de que afirmou já não se recordar, tendo produzido um documento estratégico intitulado ‘O défice da batata’, de que não possuía cópia e que ainda estaria na secretária que utilizou na sede do GES enquanto trabalhou para o grupo. Como esse trabalho terá sido produzido em 2004, só vindo a receber seis anos depois, explicou: «Está bem. Mas eu não estava ali com o ticket, a cobrar no fim do mês. Isso são trabalhos que a gente faz…».

E justificou-se ainda com outras missões efetuadas no Brasil, sempre antes de entrar para a PT (em 2004): «O Espírito Santo tem uma exposição no Brasil, na área agropecuária, enorme. Fiz um trabalho no Paraguai, para uma exploração pecuária de 15.000 cabeças, em duas herdades, uma que era ‘O Charco’ e outra que é ‘Golondrina’. Através de uma tecnologia que eu consegui implantar com um veterinário escocês, começámos a fazer transplantes de embriões. Os transplantes de embriões, em Portugal, ainda só se usam nas vacas leiteiras, porque estão estabuladas, são mais fáceis de manejar. Estive no Brasil e estive cá, ia e vinha. […] Há na Baía uma fazenda de café e torrefação de café, muito conhecida, mas que começou com uns pacotes com ar de mercearia, sem grande marketing. Nessa altura a torrefação já estava parada. Aconselhei, fomos ver os terrenos na chamada Chapada Diamantina, que é uma peneplanície enorme, e começámos a fazer os pés de cafezal […]. Ainda estive em Tocantins. O porto mais próximo de Tocantins é a mil e quinhentos quilómetros, que tornava muito dispendioso o transporte pelo aeroporto mais próximo. E aí produzia-se algodão e colza. Só que, mercê de algumas influências que o Espírito Santo tinha, e que eu também tinha (algumas), conseguimos ser aprovados como multiplicadores de semente para a Cargill, uma das grandes multinacionais das sementes. Aí foi a reconversão da produção de semente comum para óleo, no caso da colza».

Quanto à eventual associação do GES à sua propriedade alentejana, Granadeiro avançou também com uma explicação diferente da de Salgado: «Isso é um contrato que eu fiz com o Grupo Espírito Santo respeitante a uma sociedade que tenho na zona de São Manços, logo a seguir a Évora, entre Évora e Beja, e que é uma herdade com 830 ou 840 hectares, toda regada pelo Alqueva. Chama-se Vale do Rico Homem […]. Aí eu propus uma parceria para fazer um desenvolvimento com base no aproveitamento do regadio. [O GES] comprou-me 30% […]. O primeiro pagamento é o sinal e princípio de pagamento, o segundo pagamento foi na data do contrato e o terceiro, digamos, dois milhões de euros, foi um bocado mais tarde… Foi 14 milhões, cento e qualquer coisa. […] Com quem tratei tudo foi com o Dr. Ricardo Salgado, depois aquilo passou p’rá Suíça, o contrato foi assinado com o Sr. Jean-Luc Schneider, em nome do Grupo Espírito Santo, lá na Suíça». Alegam os investigadores que, nas suas contas, a ES Enterprises não possui registada qualquer participação no Vale do Rico Homem, nem Schneider alguma vez a referiu nos relatórios que produziu, tendo-se limitado a colocar a sigla PT junto a todos os pagamentos feitos a Granadeiro.

Já no inquérito parlamentar ao caso BES, aberto após a resolução do banco em meados de 2014, Granadeiro apresentara uma versão diferente da sua relação com o GES: «Eu confirmo aquilo que já disse, que fiz uma avaliação da situação da Espírito Santo Resources, fiz uma avaliação um pouco mais profunda da parte agrícola da Espírito Santo Resources localizada em Portugal, no Brasil e no Paraguai, mas nunca tive qualquer relação subordinada nem com o BES nem com a Espírito Santo Resources, nem sequer cobrei qualquer honorário ou recebi qualquer prémio por esse trabalho que realizei».

Contabilidades paralelas
O MP alega que Jean-Luc Schneider elaborava uma contabilidade oficial da ES Enterprises, onde os pagamentos das supostas ‘luvas’ se anulavam com entradas de dinheiro no mesmo valor, dando soma zero. E havia uma outra contabilidade paralela, mais simplificada, onde se revelava o verdadeiro peso dessas transferências no balanço da empresa, a qual estava contida em ficheiros informáticos destinados exclusivamente ao conhecimento de Ricardo Salgado. 

Depreende-se assim que nem o Conselho Superior do GES, reunindo os vários ramos da família Espírito Santo – que apenas tinha acesso às contas oficiais –, estivesse a par dessa distribuição de verbas.