A justiça não está feita. Há de fazer-se

Diz o povo que não se bate em quem está caído no chão. 

Mas o mesmo povo também diz que quando se tem oportunidade de matar o inimigo, não se o deixa simplesmente ferido, porque pode tornar-se ainda mais perigoso. 

E quem diz um inimigo diz um animal feroz.

Na República em que vivemos, um dos exercícios mais comuns e populares é precisamente a turba juntar-se para bater desalmadamente e esmagar quem caído em desgraça, sobretudo e particularmente quando este já está quase moribundo e sem força nem poder para reagir ou causar mal maior.
E mais a turba se junta e bate quando em desgraça cai quem mais poder teve sobre ela e quanto mais vassalagem lhe prestou.
É o que temos.

A mesma turba que se encolhe e verga aos senhores do poder, seja político, financeiro, económico, social, comunicacional, é a que se arvora guardiã da ética e da deontologia, promotora de acusação, julgadora e carrasca, tudo ao mesmo tempo e no mesmo momento, mal o arguido passa a acusado ou mal a presa cai na armadilha e dela parece já não poder safar-se.

Foi o que tivemos esta semana, com o anúncio público da acusação a José Sócrates, Ricardo Salgado, Armando Vara, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e mais de duas dezenas de outros arguidos – um trabalho hercúleo do Ministério Público e da Inspeção Tributária de Braga.

Basta recuar no tempo meia dúzia de anos e verificar onde estavam eles e quem com eles alinhava, a eles se subjugava ou, na melhor das hipóteses, eles não enfrentava.

Eles que eram o poder. Que personificavam o poder. Um poder absoluto. Um poder feito de cumplicidades, entre cúpulas de centros de decisão, com dinheiro, muito dinheiro, com arrogância, com soberba, com a ilusão de impunidade perante uma Justiça condicionada por reverenciais ocupantes dos topos das hierarquias. E o silêncio dos cúmplices e dos mansos.

Estamos perante um processo em que são acusados um ex-primeiro-ministro, o principal banqueiro português do pós-25 de Abril – não à toa com o cognome de DDT (‘Dono Disto Tudo’) –, um ex-ministro que ocupou lugares de administração na banca de referência do Estado e privada (CGD e BCP), gestores de topo da à época segunda maior empresa portuguesa, a PT – na altura um dos principais, se não mesmo o principal, investidor-anunciante (além de detentor da MEO e do SAPO) nos grupos de comunicação social.

Com estes protagonistas, tratava-se de uma rede de cumplicidades jamais vista no Portugal democrático, com um poder (quase) intocável – que contava com uma Justiça submissa no topo quando Pinto Monteiro era procurador-geral da República e Noronha do Nascimento presidente do Supremo Tribunal (e ambos – ainda que já não na titularidade daqueles cargos – foram ao lançamento do livro de José Sócrates). Ao nível do Estado e do mercado, dos decisores e das fontes de financiamento da economia nacional – e, como assim, também da comunicação social.

O processo, complexo, está ainda muito longe de chegar a seu termo e, da instrução à pronúncia, ao julgamento, à sentença, aos recursos – se for até ao fim e seguir todos os trâmites processuais –, até ao trânsito em julgado de sentença condenatória, os arguidos continuarão a presumir-se inocentes.
Mas este momento, da dedução de acusação, é particularmente relevante.
A mão cheia de nada e o segredo de Justiça deixam de ser defesa possível.

Há factos, muitos factos, há provas, há leituras, interpretações, conclusões que os investigadores reuniram e tiraram.
A defesa pode, finalmente, pronunciar-se sobre a matéria de facto e os meios de prova em causa. E juntar factos e meios de prova aos autos. E revelar também as suas interpretações e as suas conclusões.
Os juízes lá estarão para julgar, absolver ou condenar.

Se no meio da turba não faltam já os carrascos, a verdade é que a justiça, porém, não está feita. Há de fazer-se.
Aos jornais cumpre continuar a investigar e a informar.

Não se trata, nunca se tratou, de perseguir, atacar ou difamar alguém. Muito menos julgar, absolver ou condenar quem quer que seja – esse é o papel dos tribunais e da opinião pública. 

Aos jornais, aos jornalistas, resta o papel insubstituível de dar informação… e opinião. 
Livre e independente.
Como sempre fizemos.