Romance ou realidade?

A acusação da Operação Marquês é um trabalho colossal. Que dignifica a Justiça portuguesa: pela minúcia, pela argúcia, pela perseverança, pela quantidade de informação recolhida, pela coragem.

Mercê da análise de milhares de movimentos bancários, milhões de ficheiros informáticos, documentos, fotografias, escutas telefónicas, entregas de dinheiro em mão (devidamente documentadas), e do cruzamento e triangulação de todos os dados, os investigadores conseguem sustentar, de forma convincente, um dos crimes mais difíceis de provar e que os céticos consideravam impossível provar: a corrupção. 

Para mim nada disto foi surpresa, pela simples razão de que o SOL acompanhou de perto a investigação e noticiou os factos mais importantes constantes da acusação agora tornada pública. 

Aliás, este jornal foi um dos poucos meios de comunicação que trataram deste caso desde o início, o levaram a sério e fizeram o seu trabalho – sendo de realçar o nome da jornalista Felícia Cabrita.

Muitos jornalistas e comentadores houve que, por preguiça ou por cumplicidade, negaram a realidade e ignoraram o tema, fazendo vista grossa – e aparecem hoje a justificar-se com argumentos do género: «Este processo só a meio ganhou consistência, no princípio não era nada».

Ora, é preciso dizer que este processo merece credibilidade desde o primeiro dia.

E que, ao contrário também do que alguns dizem, Sócrates não foi preso para investigar.

Logo a seguir à sua prisão, o SOL publicou uma edição especial onde se relatava a maior parte dos crimes que agora surgem na acusação, com uma única exceção: a PT.

Mas os outros crimes já estavam perfeitamente documentados – bem como o complexo esquema montado por Sócrates para esconder as ‘luvas’, usando Carlos Santos Silva como barriga de aluguer. 

E é aqui, neste preciso ponto, que continua hoje a residir o nó do problema.

Toda a acusação a Sócrates assenta num pressuposto: ele era o verdadeiro dono de  contas bancárias em nome de Carlos Santos Silva, das quais se servia.

E toda a defesa de Sócrates assenta no pressuposto contrário: o dinheiro não era dele mas sim de Santos Silva, que lho cedia a título de empréstimo.

O desfecho deste processo depende do que se provar (ou o juiz entender) a este respeito.

Sobre isto, publiquei nesta coluna um artigo que me parece oportuno republicar parcialmente hoje, com ligeiros ajustes: 

Se as contas forem de Sócrates, percebe-se que lá tenha sido depositado um milhão de euros por conta de Vale do Lobo (quantia igual à recebida por Armando Vara na mesma altura), pois houve influências políticas que favoreceram este empreendimento; mas se as contas fossem de Carlos Santos Silva, por que carga de água receberia dinheiro de um empreendimento a que não estava ligado?

Se as contas forem de Sócrates, percebe-se que o Grupo Lena tenha lá depositado 2,8 milhões de euros por obras atribuídas pelo Estado a esse grupo sem concurso; mas se as contas fossem de Carlos Santos Silva, como justificaria este o recebimento de uma soma tão elevada? E onde estão as respetivas faturas?

Se as contas forem de Sócrates, percebe-se que tenha recebido 29 milhões de euros pelos fabulosos negócios da PT (pagos em três tranches), pois, como primeiro-ministro, Sócrates condicionou decisivamente esses negócios em vários momentos; mas se as contas fossem de Carlos Santos Silva, como justificaria este ter recebido tais valores (através de Hélder Bataglia, que ainda por cima disse não conhecer)?

Agora vamos aos pagamentos.  Se as contas forem de Sócrates, percebe-se que dela tenha saído o dinheiro para a compra do apartamento em Paris destinado a ser usado pelo próprio Sócrates, pela ex-mulher e pelo filho (que chegou a queixar-se ao pai por a casa nunca mais estar pronta);  mas se o dinheiro fosse de Carlos Santos Silva, como se perceberia ter sido usado para comprar um apartamento em Paris que não se destinava a ser utilizado por ele? E como entender que os respetivos acabamentos tenham sido escolhidos por Sócrates e por Sofia Fava?

Se as contas forem de Sócrates, percebe-se que tenham servido para comprar uma quinta no Alentejo que se destinava à sua ex-mulher (que continuava a ajudá-lo na resolução de muitos problemas); mas se o dinheiro fosse de Carlos Santos Silva, por que razão teria sido utilizado para comprar uma quinta onde ele nunca foi e se destinava em exclusivo à ex-mulher de Sócrates?

Se as contas forem de Sócrates, percebe-se que de lá tenha saído o dinheiro para comprar milhares de exemplares do livro A Confiança no Mundo, no sentido de o colocar nos tops; mas se o dinheiro fosse de Carlos Santos Silva, já não se perceberia tão bem o dispêndio de mais de cem mil euros para promover o livro.

Se as contas forem de Sócrates, percebe-se que tenham servido para pagar as despesas do funeral do irmão; mas se o dinheiro fosse de Carlos Santos Silva, não se compreenderia a sua utilização para liquidar essas faturas.

Se as contas forem de Sócrates, percebe-se que delas tenham saído os pagamentos de férias que ele fez com namoradas em sítios luxuosos; mas se o dinheiro fosse de Carlos Santos Silva, já se perceberia menos bem por que razão serviu para pagar tais extravagâncias. 

Numa palavra: se o proprietário do dinheiro for Sócrates, tudo faz sentido; se fosse Carlos Santos Silva, nada faria sentido.

O advogado de Sócrates, João Araújo, disse que a acusação é um «romance».

Percebe-se que o tenha dito: ele acredita que nunca se conseguirá provar que o dinheiro era mesmo do seu cliente.

Mas se ficarem demonstrados os fortíssimos indícios constantes da acusação e telegraficamente enunciados aqui, então o romance transformar-se-á em realidade.