A tragédia que não se podia repetir

Passam hoje quatro meses do incêndio de Pedrógão Grande e o país está mais uma vez de luto. Ao final do dia de ontem, o número de mortos continuava a aumentar e havia desaparecidos em vários concelhos. Ministério Público revelou ao i que foram instaurados inquéritos autónomos às mortes nas comarcas afetadas pelo fogo

Dois irmãos na casa dos 40 anos que tentavam ajudar o pai na defesa de um barracão da família em Vale Maior, concelho de Penacova. Uma jovem de 19 anos, grávida, que tentou fugir do fogo e não sobreviveu a um choque frontal junto a uma estação de serviço em Vouzela. Em Tábua, a notícia da morte de um recém-nascido de um mês. Ontem, ao final do dia, o balanço da Proteção Civil ainda não estava fechado e contavam-se 38 mortos, havendo desaparecidos e algumas áreas devastadas pelo fogo ainda por bater. Os pormenores eram também escassos. As linhas telefónicas fixas e móveis continuavam em baixo em muitos dos concelhos afetados pelo fogo. A PT admitiu que as infraestruturas estão afetadas em nove distritos e ontem pedir informações era difícil: devido aos incêndios, dizia a mensagem da operadora, o tempo de resposta estava a ser maior. Não era possível, por exemplo, ligar para Candosa, freguesia de Tábua onde fica Quinta da Barroca, onde terão morrido três pessoas – um casal e o bebé. Ao todo, a informação prestada pela Proteção Civil dá conta de vítimas mortais em quatro distritos: Viseu, Coimbra, Castelo Branco e Guarda. 

Esta terça-feira, data em que passam precisamente quatro meses da tragédia de Pedrógão, o país inicia de novo três dias de luto. Numa declaração ao país ontem ao final do dia, o primeiro-ministro insistiu que não é tempo de “demissões, mas sim de soluções”. E salientou que os acontecimentos deste domingo serão analisados junto com os relatórios dos peritos sobre Pedrógão Grande no conselho de ministros extraordinário que terá lugar no próximo sábado, no qual serão concretizadas “medidas”. Para hoje estava prevista uma audição da ministra da Administração Interna no parlamento, cancelada devido à tragédia. O parlamento debate o fogo de Pedrógão Grande a 27 de outubro e António Ferro Rodrigues, numa nota tornada pública no site da Assembleia da República, falou da ameaça das alterações climáticas. “Não podemos ficar de braços cruzados; temos de nos preparar para lidar com esta ameaça, com novos modelos de organização, prevenção e combate.” 

Ministério Público já abriu inquéritos

Questionada pelo i sobre diligências tomadas perante novas perdas de vidas em fogos, a Procuradoria-Geral da República fez saber ontem à noite que foram instaurados inquéritos autónomos nos Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP) das comarcas afetadas pelos fogos. Na tragédia de Pedrógão, o MP tem a decorrer um inquérito que abrange 64 vítimas mortais e um outro processo autónomo que investiga uma morte indireta, de uma mulher que perdeu a vida num acidente rodoviário na fuga do fogo.

Com as novas vítimas contabilizadas, já são mais de cem as mortes em incêndios este ano no país, a que há a somar centenas de feridos. Ontem estavam hospitalizadas na sequência dos fogos do fim de semana 56 pessoas, 15 em estado grave. O secretário de Estado Adjunto e da Saúde Fernando Araújo referiu 25 pessoas assistidas em cuidados a queimados. Ainda não há um balanço oficial sobre danos patrimoniais ou sobre área ardida. As primeiras estimativas reveladas ontem pelo sistema europeu de monitorização EFFIS apontam para 70 mil hectares ardidos no fim de semana, muito mais do que em Espanha (10 mil). 

As mesmas falhas?

Patrícia Gaspar, adjunta de operações da Autoridade Nacional de Proteção Civil, insistiu durante o dia que a maior dificuldade no combate aos fogos de domingo foram as demasiadas ocorrências em simultâneo: houve 523 fogos no espaço de 24 horas, o maior número este ano. Ainda assim, começam a surgir vozes para lá da política a questionar a falta de antecipação do perigo e a desmobilização de meios nas últimas semanas. É o caso de membros da comissão independente de peritos que entregou o relatório ao parlamento na última semana. Joaquim Sande Silva, em entrevista para esta edição, diz que nada justifica que só estejam 72 postos de vigia ativos ou a desmobilização do dispositivo de combate a incêndios. Outro perito, Paulo Fernandes, citado pelo “Expresso”, também lembrou que desde sexta-feira se sabia que o risco era máximo. Ainda assim, ao contrário do que sucedeu no fim de semana anterior, não houve nenhuma nota de aviso à população. Só no domingo à tarde houve indicação formal de que o país estava em alerta vermelho. 

A previsão de chuva, que ontem fez apenas os primeiros ensaios, poderá ter levado mais pessoas a fazer as queimadas habituais do fim do tempo quente e assim ter contribuído para o número elevado de fogos, disseram ao i Joaquim Sande Silva mas também Domingos Xavier Viegas, perito em fogos que ontem entregou o relatório ao MAI. Comunicação mais atempada entre autoridades e população sobre os riscos e menos rigidez na preparação do dispositivo, uma vez que as condições adversas não se regem pelo velho calendário das estações do ano, são os apelos que se repetem no rescaldo de uma nova catástrofe.