Abraão Vicente. “Eu sou político, não sou um artista que foram buscar”

O sexto de oito irmãos, filho de pais com a quarta classe, o actual ministro da Cultura de Cabo Verde não vem de um meio privilegiado e lembra que a sua geração tinha claro como só a educação podia dar-lhe o mundo. Aos 17 anos, com uma bolsa de mérito, veio estudar para Lisboa onde,…

Se pela Cultura em Cabo Verde tudo, ou quase, falta ainda fazer, ao menos o pequeno país insular tem desde há pouco mais de um ano alguém na pasta com a dose certa de arrogância, brilho e empenho. Aos 37 anos, e mesmo depois do almoço, Abraão Vicente traça uma antítese face ao género baço, sempre a meio de uma eterna digestão a que, deste lado, estamos habituados. Tendo estudado Sociologia, em Lisboa, na Nova, riscou forte para lá das linhas do currículo, e nesta entrevista conta-nos como passou das críticas num blogue a um assento no parlamento do seu país, como a lisboa cesárica dos últimos cafés, a vida académica e artística das galerias e bares antes de a cidade virar o ai Jesus dos turistas, lhe infundiu uma atitude de viajante entre os meandros quase invisíveis que são a verdadeira vida de uma cidade. Tudo isso que o ajudou a perceber que a Cultura não é um fim mas o princípio de qualquer grandeza.

Estudou Sociologia em Lisboa, na Universidade Nova. Quanto tempo viveu cá?

De Outubro de 1998 a Junho de 2003.

E sente que foi nesse período que o seu percurso como escritor e artista começa?

Sim. Vir para Lisboa despertou em mim uma consciência mais crítica, que se revelaria também na escrita, em relação àquilo que é o confronto de um africano e cabo-verdiano com as instituições portuguesas. O ser obrigado a renovar periodicamente o visto, renovar a bolsa de estudo, o embate com a burocracia, tudo isso desencadeou uma expressão artística mais crítica e apurada.

Sentiu que as coisas não funcionavam…?

Não. Eu fui aluno com bolsa de mérito do Estado de Cabo Verde no ano 97-98. Ao chegar aqui, foi a primeira vez em que me confrontei com uma situação em que tinha de ter as autorizações todas e os papéis em dia, sendo que pela primeira vez me senti um estrangeiro… na relação com a Universidade, na relação com o Estado. Tive de provar que frequentava a Universidade, que tinha as condições para renovar a bolsa de estudo. São situações burocráticas normais, que para um jovem de 17, 18 anos, foram novas. Fui obrigado a levantar-me a altas horas da madrugada para me colocar numa fila para conseguir uma senha, para renovar o visto. Na altura, aquilo mexeu imenso comigo.  Compreendo, evidentemente, que as pessoas não podem entrar num país que não é o seu sem autorização, mas na altura senti um misto de revolta e grande inquietação: porque é que há toda esta conversa de comunidade, de livre circulação, de partilha de valores, e, no entanto, persiste todo este processo bastante rigoroso e burocrático que muitas vezes nos impede de nos sentirmos parte da sociedade portuguesa?

Houve outros aspectos transformadores na sua perspectiva do mundo?

Foi a primeira vez que me vi reunido com guineenses, angolanos, moçambicanos, e em que pudemos dialogar sobre a nossa condição comum, trocar impressões também sobre os nossos países. Aí sim percebemos o trabalho que falta ainda fazer para de facto concretizarmos a nossa comunidade.

É comum, nalgumas faculdades, os estudantes dos PALOP formarem grupos um tanto fechados, comunidades próprias. Qual foi a sua experiência a este respeito?

Nós, cabo-verdianos, temos laços de solidariedade muito fortes. Por falarmos crioulo, muito facilmente criamos pequenas comunidades autónomas. Acho que o crioulo é a língua que nos une na diáspora. Repare que é comum que o cabo-verdiano de segunda geração que nasce em França fale crioulo e francês, o que nasce nos EUA fala crioulo e inglês… Cá em Portugal unia-nos uma série de circunstâncias comuns: o termos de alugar casas para dividir os quartos, o partilharmos residências estudantis, o partilharmos esse momento de renovação das bolsas, dos vistos, o de certa forma não estarmos plenamente integrados… Porque há sempre o rótulo de “aluno africano”. A nossa comunidade de alguma maneira é ditada por um enquadramento comum. 

Além desse aspecto das dificuldades burocráticas, culturalmente sentiu uma abertura…?

Sim, eu integrei-me logo numa associação, a Associação da Acção Social da Universidade Lusíada, grupo no qual criei fortes laços de amizade. Ao mesmo tempo fazia parte de um grupo católico, ia à missa, fiz peregrinações a Fátima… Portanto, tinha uma comunidade portuguesa que me acolheu também muito bem. Na Universidade, e se no meu ano eu era o único cabo-verdiano a estudar Sociologia, muito rapidamente me integrei. Acho que também tenho essa capacidade de adaptação. Já artisticamente, a minha necessidade foi expressar-me como cabo-verdiano. A dificuldade maior que senti passa por nós sermos recebidos por galerias e por projectos artísticos como artistas em nome próprio e não como “artistas africanos”.

Há uma tentativa de responder àquilo que se discute na sociedade?

O que reparei é que para fazermos parte de qualquer projecto curatorial tínhamos de estar sob essa etiqueta que nos enquadrava como africanos ou cabo-verdianos. Fiz parte de um projecto na Gulbenkian cuja etiqueta era a do discurso pós-colonial, etc. Há essa necessidade ainda, e eu acho que o trabalho que a CPLP e que os próprios países têm de fazer agora é desmistificar estas categorias. Hoje, ao ver o trabalho de Yonamine e de Ondjaki, pessoas quase da mesma geração que eu, em artes diferentes, a pintura e a escrita, estes são autores universais. A etiqueta: africano ou angolano, cabo-verdiano, guineense… só serve para enquadrar estas pessoas quando são apresentadas na comunicação social. De resto, parece-me que em termos de qualidade cada vez mais a comunidade lusófona, e concretamente os países africanos, contam com uma nova geração muito bem formada, e com um talento extraordinário. O que lhes falta é um trabalho consolidado por parte das instituições dos seus países para os promover onde quer que escolham viver.

E consigo como foi?

Hoje em dia tenho dupla nacionalidade… Sou português e cabo-verdiano – não pelo tempo que cá vivi mas pelos laços familiares, ainda assim o que sou é cabo-verdiano, mesmo que tenha outra documentação, o meu discurso é como cabo-verdiano… Não por revolta, mas simplesmente porque a minha identidade está formada, o meu espaço de acção é enquanto cabo-verdiano, ainda mais agora que sou governante, não há margem para titubear. Adoro Lisboa, vivi aqui seis anos da minha vida, tenho amigos e laços fortes, sinto-me em casa em Lisboa, mas entendemos a necessidade de ter um discurso como… não diria novos africanos, mas o que sinto é uma enorme esperança nesta nova geração de dirigentes africanos. Tiveram a oportunidade muitos deles de estudar aqui na Europa, formaram-se bem, e nos encontros internacionais em que participo encontro muitos ministros da minha idade (37, 38, 40 anos), e que têm essa perspectiva de uma África que não se lamenta, que não culpa os outros, que quer construir coisas, e é essa versão que em Cabo Verde também estamos a alimentar.

Em Portugal tem havido um debate envolvendo a questão colonial, revendo-se a partir daí a dimensão do racismo… Tendo estudado sociologia, gostava de saber se o encontro com as comunidades de língua portuguesa lhe inspirou alguma reflexão sobre estas questões.

Sim, há um ciclo que fiz, uma série de quadros a partir dos passaportes de amigos de várias nacionalidades. É uma série que reflecte sobre a identidade, sobre a forma como o documento de identificação pode limitar-nos, limitar por exemplo o modo como circulamos geograficamente. Eu e um americano, eu com o meu passaporte cabo-verdiano sou um cidadão diferenciado, tenho menos direitos em certas circunstâncias do que um norte-americano ou um cidadão da União Europeia, porque lhe é permitido circular livremente, com ou sem visto, em determinados espaços. Essa é uma reflexão que se está a fazer na CPLP: a questão da mobilidade. Põem-se imensas reservas, por questões de segurança, da geoestratégia de cada país… Há um discurso base que os chefes de Estado têm feito sobre estarem em diálogo sobre esse aspecto da mobilidade, mas vejo esta meta com alguma dificuldade porque estes países não têm a mesma agenda geoestratégica. 

Acha que não vai dar em nada?

O que temos de perguntar é como é que vamos estabelecer uma agenda em comum de forma a que as pessoas circulem no espaço da CPLP livremente. Eu começaria por propor uma mobilidade artística e criativa. A agenda sobre a qual chegaríamos a acordo seria que os artistas podem produzir, expor e vender ou comercializar dentro de todo o espaço da CPLP. Tem-se colocado demasiada ênfase na mobilidade de pessoas, mas eu começaria por oferecer a possibilidade de os nossos produtos criativos circularem livremente e livresde impostos, no sentido de assim construirmos um espaço comercial para nos conhecermos. A verdade é que não nos conhecemos. Quem vai a Angola, quem vai a Moçambique… Há um mito relativo aos nossos laços, aos aspectos culturais que partilhamos. Sim, temos em comum uma mesma história colonial, mas estes países têm raízes muito distintas. Cabo Verde foi fundado por Portugal e com africanos. Não temos uma identidade apenas africana e seria errado levar por diante qualquer pensamento que negasse a iniciativa portuguesa na nossa fundação. Precisamos, no fundo, de nos conhecer mais, mas de ter uma organização executiva na CPLP, investir recursos para que esta, além do que gasta no seu funcionamento, possa financiar programas e projectos. Temos o CPLP Doc, que financia cinema e produção cinematográfica, mas sem a mobilidade dificilmente conseguiremos estar mais próximos uns dos outros. Continuaremos a falar de forma um tanto umbiguista. Eu falo de Cabo Verde, o angolano de Angola, o guineense fala da Guiné. Certo é que dificilmente a minha geração fará esse discurso de vir cobrar a Portugal alguma coisa, acho que não tem adiantado de nada e não faz sentido. O que vejo é uma vontade de partilharmos experiências de governação no seio das comunidades de língua portuguesa.

E hoje há mais condições do que no passado para isso porquê?

Há uma oportunidade económica enorme a explorar pelo facto de se estar a falar de um universo que se prevê que venha a contar com uma comunidade global de quase 500 milhões de pessoas em 2050. Cabe-nos traçar uma estratégia. Vejo os jornais a falirem em Portugal e vejo jornais a falirem em Cabo Verde e na Guiné… Porque não pensar-se numa estratégia comum? Porque não fazer com que os conteúdos de alguns desses órgãos de imprensa seja partilhado? Mas que, ao mesmo tempo, isso seja feito de forma honesta. Porque enquanto continuarmos a ver a imprensa de países diferentes a fazer o jogo das trocas de acusações em relação aos interesses que estão por detrás dos grupos de comunicação não iremos a lado nenhum. É preciso avançar com uma perspectiva construtiva. Essa perspectiva comunitária só pode ser conseguida apostando nas pessoas. Os artistas e os criadores são os melhores embaixadores para fazer a CPLP funcionar. É por isso que o lema de Cabo Verde para a nossa presidência a partir do próximo ano vai ser “cultura e comunidades”. Valorizar as comunidades de cada um dos países que formam a CPLP e fazer com que a cultura seja a chave para abrir essas portas fechadas.

Cresceu num ambiente privilegiado culturalmente?

Não. Eu sou uma pessoa absolutamente normal dentro daquilo que é a realidade de Cabo Verde. O meu avô assumiu alguma proeminência enquanto investigador da língua cabo-verdiana, o meu pai escreve poesia, mas não tem mais que a quarta classe, e a minha mãe também não. Quando digo que sou o mais normal dos cabo-verdianos isto liga-se ao facto de todas as pessoas da minha geração terem tomado a educação como a única hipótese não apenas de ascensão social mas de conseguirem assegurar uma vida digna. Cresci em Assomada no interior de Santiago, estudei até ao 11º ano lá, depois fiz o ano zero, 12º, na Cidade da Praia, e depois vim estudar para cá, com a bolsa da cooperação portuguesa. Portanto, não considero de forma alguma que tenha tido uma educação privilegiada. Agora, tive acesso a pessoas e a meios aqui em Portugal, como por alguns dos países por onde andei depois, que me permitiram cultivar-me. Quando me dizem: “És muito polémico, andas armado em revolucionário…” O que respondo é que acredito na força evolutiva dos processos. Acredito que o trabalho, o método, a repetição… Isto é um cliché, mas é o que funciona para uma pessoa que vem de uma família em que era um de oito irmãos – eu sou o sexto de oito filhos… E foi pela educação que consegui qualquer coisa do que tenha conseguido até aqui. Mas é irrelevante tudo aquilo que tenha feito, uma vez que o governo de que faço parte tem apenas ano e meio de mandato, um que pode prolongar-se por cinco ou dez anos, mas depois disto voltarei para a sociedade civil. O governante que entra pobre no governo e sai rico alguma coisa de mal fez. O nosso salário não dá para luxos. Sinto que Cabo Verde é um país que nos dá tão-só condições para exercermos as funções dignamente mas nada mais do que isso.

Além da obra como escritor, sei que desenvolveu interesses na área da pintura, fotografia… Estamos a falar de um leque tal que gostava de saber quais foram as figuras que o guiaram?

O meu pai e o meu avô. Não conheci o meu avô mas é alguém que no sítio onde nasci, Santa Catarina, é uma figura conhecida e idolatrada. Ele fazia de tudo. O meu irmão mais velho também pintava em casa, o meu pai escrevia com uma obsessão louca, mas depois é como disse: aqui em Lisboa tive oportunidade de conhecer galeristas, pintores, depois fui para Barcelona, após terminar Sociologia, com a ideia de tirar um curso de fotografia. Não pude porque não tinha como pagar. Então andei atrás de fotógrafos a aprender a tirar fotografias e foi assim que fiz o meu percurso, e tenho hoje uma colecção bastante significativa de fotografias, as quais acho que terão alguma qualidade. Sou um autodidacta. Como é que um rapaz de Assomada, em Santa Catarina, acabou em Barcelona? Fui, trabalhei em lojas a vender roupa em segunda mão, andei pelas ramblas a fazer desenhos e a vendê-los, andei a servir cervejas em bares, fiz aquilo que o pessoal da minha geração que estava espalhado pela Europa fazia. Mesmo pessoas de famílias privilegiadas de Cabo Verde para terem acesso às experiências formativas da sua juventude tiveram de trabalhar para pagar. Mas aqui em Lisboa tive acesso a imensos ateliers, eu ia a todas as exposições, frequentava todos os museus… Ainda o faço sempre que venho cá. É inspirado nessa vivência que, hoje, em Cabo Verde, a base do meu programa tem sido reconstruir os museus, montar projectos curatoriais e que sejam modernos, interactivos e com um forte pendor pedagógico. Só me considero privilegiado por esse aspecto: ter tido a oportunidade de conhecer pessoas que me abriram portas, que me deram uma vista para um mundo ao qual eu, de origem, não pertencia. Mas isso deixa claro que é possível pela educação e pela exposição à arte as pessoas mudarem completamente os pressupostos de origem. Isto é conversa de sociólogo. É claro que o meio influencia, mas penso que se conseguirmos tirar proveito de todas as oportunidades do meio em que nosinserimos, somos capazes de ir além do nosso ponto de partida.

E como olha hoje para esta cidade?

Cheguei a Lisboa em 1998, passaram quase duas décadas, e parece que foi ontem. Andar por Lisboa naqueles dias, nesta zona da cidade [zona da Sé], não andava aqui ninguém. Hoje isto está cheio de gente, o que me parece óptimo porque finalmente Lisboa tem quem valorize o que há de extraordinário nesta cidade. Mas para nós, naquela altura, foi-nos dada a oportunidade de ver os museus todos com muito pouca gente. Havia um culto em volta da Galeria 111 sempre que tinha novas exposições. Seguir o trabalho da Cristina Guerra… Então, os bares davam-nos, aos iniciantes, a oportunidade de pendurar quadros nas paredes, havia um gosto, um prazer em participar na vida urbana. A nossa geração ia a todas as inaugurações de tudo o que se fazia nesta cidade, e havia aqui um gueto dos artistas africanos, mas também estavam ou passavam por cá alguns dos grandes: o José Guimarães… Havia muita gente que nos abria a porta para que ajudássemos a limpar os pincéis, a pintar quadros… um ambiente que hoje já não sei se perdura, mas isto foi uma escola para mim, em todos os sentidos. Felizmente, e no que se refere ao racismo, não tive experiências traumatizantes em Lisboa. Quando falo daquela parte burocrática, do que tinha a ver com a renovação do visto, etc., para mim foi traumatizante no sentido em que levantar-me às três ou quatro da manhã para me ir meter numa fila, horas à espera de tirar uma senha… [Suspira encolhendo os ombros]o país não é meu, tenho de aceitar. Mas isso porque era o único momento em que, de facto, me sentia estrangeiro. No resto do ano, estava tudo bem. Na Nova eu era muito popular, porque passava a vida lá, participava nas actividades estudantis, fazia parte da Associação… O único momento do ano em que me lembrava que isto não era o meu país era esse, em que me via obrigado a esse calvário.

Antes de chegar a ministro, tornou-se deputado. Como é que foi o iniciar da vida política?

Fui sempre muito crítico. Cheguei a Cabo Verde em Novembro de 2005 e revoltou-me perceber que havia dificuldades tão grandes… Voltei ao meu país tal como cheguei aqui, sem ter recursos fora do normal, mas tinha uma licenciatura e tudo o que aprendi nos anos que passei fora. Mas ver a condição social das pessoas na Cidade da Praia, as diferenças brutais que existem… E não é que haja gente obscenamente rica, mas a miséria é uma coisa bastante evidente. Escrevi sempre nos meus blogues, fui cronista, fui editor do jornal “A Nação”, e chegou uma altura em que percebi que tinha duas hipóteses: ou continuo a fazer isto até ao final da minha vida e torno-me um indivíduo que critica mas que não está disposto a fazer nada, ou dou o corpo ao manifesto. E eu criticava todos os partidos, a vida parlamentar, o nível do debate… Nisto surge um convite muito claro, em 2011, do Dr. Carlos Veiga para fazer parte da lista do Movimento Para a Democracia como independente. Entrei na lista, num lugar super-privilegiado – no quarto lugar, que me dava a certeza que seria eleito deputado mesmo que o partido perdesse as eleições… Eu aceitei e perdemos as eleições. Foi o momento chave na minha vida, quando perdemos as eleições e eu tive de decidir se ia para deputado na oposição ou se voltava à minha vida, regressava à crítica e as pessoas esqueciam-se do meu breve envolvimento na política.

Porque é que foi tão decisivo?

Decidi que ia aproveitar a oportunidade, na oposição, para aprimorar as minhas intervenções e, durante os cinco anos seguintes, tive a possibilidade de andar pelo país inteiro, perceber o que eram as causas pela quais valia a pena lutar, perceber de facto o modo como as pessoas vivem, e essa foi a melhor escolha que fiz na minha vida. Isto porque viver em Cabo Verde e ser indiferente àquilo que se passa no país, ou viver em Cabo Verde e simplesmente ir para as redes sociais para andar a acusar o governo de ter errado, atacando do mesmo passo a oposição por esta não ter nível, lembrando que nenhuma mudança afectará seja que realidade for… A prova disto é que grande parte das pessoas que em 2005 e 2006 tinham blogues e faziam as mesmas críticas que eu fazia então, hoje continuam a fazer as mesmas coisas que já faziam há dez anos atrás. Ou seja, se quisermos continuar naquela crítica contra tudo e todos e não quisermos agir, temos uma carreira garantida para a eternidade sem sairmos do mesmo lugar. Eu hoje sou ministro, e não é que isto seja alguma coisa de extraordinário, mas estou a ter a oportunidade real de contribuir. A minha acção tem sido a de tentar implementar uma agenda pública voltada para a cultura, voltada para os incentivos às acções culturais e ao acesso à cultura. Isto porque temos as duas capitais, Praia e Mindelo – Praia é a capital de Cabo Verde, onde há os museus e os centros culturais, e depois temos o resto do país onde nada existe. Acesso significa não só criar estruturas nacionais, mas municipais, dar acesso ao ensino artístico, o que é fundamental.

Que medidas tem estado a implementar?

Criei há um ano um programa que é a Bolsa de Acesso à Cultura e que financia as propinas aos alunos que querem aprender música, teatro, ballet, e isto proporcionou duas coisas: o acesso e a sustentabilidade dessas escolas. Muitas delas não tinham como sobreviver, então tinham calendários em part-time. Hoje, já têm forma de se tornar sustentáveis. Reactivámos o programa de reestruturação cultural, que passa por reabilitar todo o património com valor histórico, nomeadamente na Cidade Velha, que é também Património da Humanidade, mas também reabilitar os auditórios, os centros culturais, as bibliotecas, conectá-las à rede de internet, dar-lhes acesso à plataforma internacional das redes de bibliotecas… Uma biblioteca pode ter 100 títulos, mas se estiver conectada à internet pode ter milhares. E nada disto tem a ver com esse princípio da democratização, a palavra é “acesso”. Porque há gente que quer, mas não tem a possibilidade de aceder. Há centros culturais construídos em alguns sítios mas que não têm programadores culturais. Os responsáveis simplesmente não sabem como pensar uma programação. Ora, é muito simples dar o passo seguinte, porque qualquer artista que eu leve à Cidade da Praia, pagando-lhe uma passagem e uma estadia de duas ou três noites consigo colocá-lo num outro sítio. Estamos por isso a redesenhar a forma como se vê a política cultural. Não acredito que o sector da cultura seja todo ele para privatizar. Os privados podem ter as suas iniciativas, mas temos de ter uma política do Estado de incentivo à cultura.

Então o Estado além de dar condições no seu entender também tem de ter uma acção enquanto programador cultural?

Sem dúvida. Estamos a fazer isso e a formar programadores culturais e a formar agentes e produtores culturais. Porque o sector privado pode sempre ter iniciativas, mas… No passado o que é que se fazia em Cabo Verde? Grande parte do orçamento da cultura ia para financiar iniciativas privadas, nem todas elas com um princípio pedagógico, nem todas elas com uma perspectiva de contributo estrutural e nem todas elas de qualidade. O Estado deve incentivar os privados a financiar actividades culturais, mas o Estado deve também ter um programa base, no que toca às necessidades de acção cultural, desde a publicação de obras, tradução de obras, festivais literários como o que vamos fazer em Outubro, festivais musicais (temos um grande evento que é o Kriol Jazz Festival, numa parceria entre a autarquia da Cidade da Praia e os privados…), programação de teatro, financiamento ao cinema… Num país como Cabo Verde ou financiamos e impulsionamos a cultura ou ela não acontece em moldes em que possa ser pedagógica ou com um fim específico.

Uma das suas prioridades passa também por divulgar os artistas cabo-verdianos no estrangeiro. Essa tem sido uma das principais dificuldades, que é o facto de os esforços que se fazem para estabelecer pontes entre os países da CPLP se revelarem algo infrutíferos. Há um ou dois escritores que conseguem ir além das fronteiras nacionais, que se tornam quase símbolos dos seus países, e o resto fica na sombra deles. Como lhe parece que é possível estabelecer uma verdadeira encruzilhada, isto quando há cada vez mais artistas e escritores que, aprisionados na estreiteza dos seus países, quase perdem o incentivo para não apenas produzir como divulgar as suas obras?

A criação de um festival literário nasce um pouco em resposta a essa dificuldade, mas nasce primeiro numa lógica de reactivar o papel da Biblioteca Nacional como a instituição que promove a leitura e o livro, e,  segundo, despertar a atenção do mundo para aquilo que se faz em Cabo Verde… Mas é claro que as editoras assumem políticas próprias, e que são orientações que ultrapassam completamente as políticas públicas. Mas aí voltamos ao que falávamos há pouco: eu como governante de um país pequeno acredito que tenho de financiar a internacionalização dos meus artistas. Por isso é que o festival literário Morabeza nasce numa parceria com o LeV [Literatura em Viagem, de Matosinhos], com a Rota das Letras, em Macau, e com a Feira da Palavra, de Porto Rico… Mas o que é que nós fazemos? Nós financiamos a presença dos nossos autores e artistas nos festivais e feiras no estrangeiro. Porque essa foi sempre uma crítica que fiz no passado como escritor, que é o facto do escritor convidado de Cabo Verde nesses certames estar lá ao que parece para preencher uma quota. “Temos um cabo-verdiano, temos um angolano, temos um moçambicano…” Reparo agora que os festivais em que a organização pensa em fazer representar os países com escritores vindos de cada um deles acabam por não trazer grande consagração. Os próprios autores não se sentem muito estimulados ou valorizados a ir a uma vila qualquer, recôndita, para marcar essa suposta diversidade. Foi para isso que criámos um festival em Cabo Verde, para que os artistas e escritores cabo-verdianos surjam no palco principal. Convidamos parte da imprensa para estar presente e dar visibilidade, mas fazemos aquilo que penso que deve ser feito que é levar os escritores às escolas. O nosso festival não é para que os escritores vão conviver entre eles, é para se darem à comunidade, para visitar as escolas básicas, as secundárias e as Universidades. Mas nós queremos fazer mais, que é publicar livros de boa qualidade a baixo preço. Um livro fechado vale zero. E quando o salário mínimo é 110 euros em Cabo Verde e um livro custa 25 euros… [Levanta as mãos, rindo-se consternadamente] Dificilmente…

É esse o custo médio de um livro em Cabo Verde?

Um livro importado daqui custa entre 20, 25, às vezes 30 euros. Se quisesses um livro qualquer do Lobo Antunes, do [Francisco José] Viegas, ou outro autor nunca pagarias menos do que 18, 20 euros.

E como é que é o mercado editorial cabo-verdiano?

Fraquíssimo. Neste momento há uma editora, a Rosa de Porcelana, que tem feito um trabalho muito interessante… Temos a Livraria Pedro Cardoso – repare: uma livraria que decidiu entrar no sector da edição porque de outro modo não tínhamos livros dos autores nacionais… As Universidades começam agora a publicar livros técnicos, mas o mercado é muito restrito. Temos 500 mil habitantes no país.

Um dos problemas que sufoca as editoras em Portugal é o facto de haver uma lei estúpida que penaliza,a nível de impostos, as editoras que tenham fundos editoriais em armazém, os quais são arrolados como activos ainda que, de ano para ano, o valor dos livros vá reduzindo, o que na essência acaba por significar um incentivo do Estado a que as editoras destruam os livros que não se vendem ao fim de uns poucos anos, recuperando cêntimos com a pasta de papel. E, além disso, há uma dificuldade até dos particulares para doarem livros às bibliotecas, uma vez que estas não têm funcionários para catalogarem os livros e pô-los à disposição do público, por isso há milhares de livros que acabam simplesmente atirados ao lixo. Vê alguma hipótese de Cabo Verde pensar não só em ir buscar as novidades editoriais, mas ir buscar estes livros sem destino?

O trabalho que temos feito de parceria com a Booktailors passa por já neste festival termos uma pequena feira e, em Março, Abril do próximo ano, faremos uma grande feira, não com novidades editoriais, mas com livros que vamos comprar aos armazéns, por exemplo.

Armazéns de editoras? Quem faz essa interligação?

Sim, armazéns de editoras. Os contactos têm sido feitos através da Booktailors, mas temos outros parceiros… O que nós queremos é colocar outros livros lá. Mas isto também passa por uma política de isenção fiscal ou de baixa fiscalidade em relação aos produtos culturais, e isso é uma medida que estamos agora a desenvolver com o nosso Ministério das Finanças. O mais importante para mim, em 10 ou 15 anos, é ver aumentar de forma significativa os índices de leitura no país. Se o Estado precisa de subsidiar isto, então cabe-nos pensar uma política para que isso seja exequível. O que não pode continuar a acontecer é essa desconexão entre a biblioteca, o livro e o leitor. Portugal consegue ainda traduzir livros, ter obras clássicas de outros países em português, e nós queremos incentivar isso também. Ou seja, ter os livros de autores, lusófonos ou não, para que os nossos alunos e cidadãos os possam ler.

“A Nação” publicou recentemente um artigo polémico em que José Luiz Tavares era o mais citado, falando-se ainda de Arménio Vieira e Germano Almeida… A posição de Tavares era de que este festival que está a ser preparado já nasceu torto porque em vez do papel central ser dado à Biblioteca Nacional foi dado a uma empresa privada portuguesa.

Para já quero demarcar-me desse discurso um pouco racista que passa por achar que uma empresa portuguesa é uma empresa estrangeira e que não deve trabalhar em Cabo Verde. Grande parte da nossa diáspora vive cá, trabalha em Portugal, em empresas portuguesas, e não são tratados como estrangeiros, são bem recebidos… Com esta parceria nós também consolidamos os esforços da CPLP: temos uma empresa portuguesa que nos faz assessoria. Respeito a posição do José Luiz Tavares, mas um escritor, ou uma personalidade, não inverte o bom sentido da nossa política, que é promover a literatura cabo-verdiana. E o José Luiz Tavares será o único desse leque de três que não vai participar no festival. Houve a tentativa de envolver os nomes de Germano Almeida e Arménio Vieira, que é prémio Camões, mas, no mesmo dia, através dos seus representantes – e no caso do Arménio falei eu com ele directamente –, no mesmo dia à tarde confirmámos a presença dos dois no festival literário. Tentou, portanto, criar-se um ruído que objectivamente não deu em nada. Vamos ter todos os grandes nomes da literatura cabo-verdiana actual no evento, e é preciso lembrar que a lógica é este ser um festival para se repetir todos os anos. Os que não estão no cartaz este ano, vão estar no próximo, portanto, não há drama nem há polémica.

Mas ele fala também de uma subalternização dos autores cabo-verdianos aos portugueses…

Não sei se conhece o percurso do José Luiz Tavares… Ele é dos nossos maiores poetas. Muito premiado. É normal que as expectativas dele sejam as de ter um papel mais central, ou eventualmente não ter tantos outros nomes sonantes. A verdade é que temos Mia Couto, temos Agualusa, temos Valter Hugo Mãe, temos Afonso Cruz, que são portugueses e são autores premiados. Na literatura não se pode comparar nome a nome. Não entro nesse tipo de comparações. O José Luiz é dos nossos grandes. Estando presente no festival teria o destaque que tem como o nosso maior poeta vivo. Se ele não está lamentamos, vamos fazer tudo para que possa estar no próximo. Estamos a fazer o melhor para ter os melhores em Cabo Verde. Os autores estrangeiros que vão, entram na lógica de trazer boa literatura, literatura premiada… Há gente que gosta e não gosta, em todo o lado… Gosta de Mia Couto, não gosta de Valter Hugo Mãe… Quisemos ter grandes nomes da literatura em Cabo Verde e conseguimos. Também pretendemos conseguir patrocínios. Trata-se de um festival patrocinado a 90% por privados. 90% de 110 mil euros. E como é que conseguimos isto? Para já tendo uma empresa credível como a Booktailors, com um currículo impressionante na organização de festivais e feiras em Portugal, e na internacionalização da própria literatura portuguesa; segundo, tendo um cartaz como o que temos. Houve muitos momentos e eventos literários em Cabo Verde, e no passado tinham já tentado levar lá o Mia Couto, o Agualusa, e não conseguiram. Porque é que nós conseguimos? Porque garantimos a essas pessoas que temos gente que entende do métier a tratar das coisas. Não podemos ter este medo de se tratar de uma empresa privada com fins lucrativos. As empresas existem para isso, para prestar serviços.

Sabe que a Booktailors tem já também as suas próprias polémicas aqui em Portugal. A Booktailors surge e impõe-se num período em que, por contraste, tem havido um desinvestimento público na cultura, em que o próprio ensino cada vez menos tem condições de formar públicos, e hoje existem festivais literários em cidades que não têm sequer livrarias, ou que, se as têm, são as típicas livrarias de centro comercial, onde o que se vende são novidades editoriais. A Booktailors também engrena numa lógica de compressão em que há um certo número de autores, e desde logo aqueles que enquanto agência esta representa, e que são dados como os grandes portugueses num eclipse total de toda a outra literatura. A questão que lhe ponho é se Cabo Verde ao escolher esta empresa não estará a reafirmar uma perspectiva da literatura que já é dominante? Quando me fala do Valter Hugo Mãe ou do Afonso Cruz, tem noção que já não são sequer nomes estabelecidos criticamente, mas marcas numa exígua constelação estabelecida através do marketing editorial e destas agências. Em Portugal há um conjunto de nomes de que, para onde quer que nos viremos, já não nos conseguimos livrar, e a verdade é que a literatura portuguesa nunca foi tão pouco plural. Se há algo que parece apontar para uma vaidade ferida na reacção de José Luiz Tavares, também fica a sensação de que se cria mais um festival, e mais uma vez se leva uma mesma agência que se impôs numa lógica de arrivismo nas letras, estabelecendo os novos senadores da nossa literatura que se vale grandemente do facto da crítica ter desaparecido, não havendo hoje no país uma só revista literária que abra margem à polémica e a um debate sustentado sobre como estes nomes assumiram a dianteira à revelia de tudo o mais. Dá a sensação que estamos a ser desossados: a cultura morre e triunfa o marketing.

Para já não comento as polémicas em Portugal, mas em Cabo Verde quem decide quem vai somos nós, o Ministério da Cultura. E, tendo a lista de autores, foram convidados aqueles que quisemos ter cá. Temos também já uma lista de autores para o próximo ano… A Booktailors foi a Cabo Verde prestar um serviço técnico e de assessoria. Em Portugal o que penso é que têm de aparecer mais empresas neste sector, e as editores têm que fazer o seu papel, e as revistas têm que voltar a meter-se em campo. Parece sempre errado diabolizar uma empresa por fazer o que lhe compete. Se a Booktailors faz bem esse trabalho, na minha perspectiva, então é porque há uma necessidade dele no mercado. Ninguém impede que outras lógicas se imponham. A questão é que é preciso trabalhar com a competência com que a Booktailors o faz, para alcançar o sucesso que tem alcançado. É claro que é uma agência literária, promove os seus autores, mas em Cabo Verde isso não nos interessa. O que nos interessa, o nosso foco, era termos uma lista de autores que queríamos convidar este ano e que são também os autores mais conhecidos em Cabo Verde. Repare: ao falarmos de Arménio Vieira, Germano Almeida, Filinto Elísio, o próprio José Luiz Tavares, são autores incontornáveis. Os novos autores cabo-verdianos também reagem, protestando que são sempre os mesmos. Não, o que nós queremos é consolidar isto e, por isso, fizemos questão de ir buscar também um conjunto de autores que ninguém conhece: o Odair Varela (todo o mundo fica a pensar: mas quem é o Odair Varela), a Natacha Guimarães, Chissana Guimarães… Toda essa malta que tem publicado ultimamente. Não precisamos de deixar ninguém de fora. A Academia Cabo-Verdiana de letras também fez parte do processo de selecção dos autores. Há gente que não está contente, mas eu digo-lhes sempre: há o próximo ano, e o seguinte e o seguinte. Nós não vamos deixar a literatura cabo-verdiano cristalizar-se em torno de um conjunto de nomes. É por isso que estabelecemos esse equilíbrio: convidados 10 a 12 pessoas que são os consagrados, e temos um leque quase igual, 12 a 15 autores que, quando apresentarmos o cartaz, vão levar as pessoas a dizer: “Mas que festival literário é este, se esta gente ainda não tem obra.” É também por isso que estão lá, é por isso que é esta gente nova que vai também às escolas. Ou seja, neste aspecto não prestamos um excessivo culto a ninguém. O nosso trabalho é fomentar, é não impor uma lógica excludente. E, no que diz respeito à Booktailors, fiz a escolha entre várias propostas. E não foi a Booktailors que me disse que autores convidar, fui eu que lhes disse que queria o Mia Couto e outros escritores. Em Cabo Verde há uma grande demanda por Valter Hugo Mãe e Afonso Cruz, há uma classe nas universidades que querem tê-los lá. Mas este não é o evento definitivo da literatura em Cabo Verde, é isto o que estou a tentar explicar à própria comunicação cabo-verdiana, sendo que alguns jornalistas de vez em quando ligam à minha assessora a perguntar: “E fulano está convidado? E beltrano? E porque é que vai fulano e não beltrano?” É um evento, haverá mais. Já alguém nos veio dizer que todos os escritores cabo-verdianos deviam ser convidados! (risos)

Então a polémica está sanada?

Em Cabo Verde tentaram pôr-me a falar mal do José Luiz Tavares. Eu adoro o José Luiz, é um poeta com uma obra extraordinária… Agora, não confundo os meus gostos e a apreciação que faço da obra dele e nem as críticas que ele faz ao festival, ao nome que escolhemos [Morabeza], com aquilo que ele é. Acho que o devo considerar como a um grande poeta. Ele vai estar sempre na agenda do festival… Fizemos o contacto este ano e vamos voltar a fazer no próximo. Mas não vou entrar em polémicas, até porque eu estou ministro, não sou ministro. (risos) Quando o meu mandato acabar ele vai continuar a ser um grande poeta, um grande escritor, e não faz sentido criar inimizades. É um país tão pequeno… às vezes fazemos umas guerras que não existem. Eu estou na paz.

Quando integrou este governo teve de se bater para que o orçamento da cultura fosse maior? Qual é o papel que a cultura e o investimento nela tem para o governo que integra?

Costumo dizer ao primeiro-ministro, frontalmente: “Nós somos a pasta mais importante deste governo. O senhor está sempre a dizer que é precisa uma nova atitude, formar um cidadão mais culto, mais informado, mais ciente dos desafios, com espírito mais ecológico… Sem cultura nada disso acontece.” E eu também tenho a pasta da Comunicação Social. O que nós temos tentado fazer é mostrar a necessidade de investimento na cultura. Quando falo em reactivar as infra-estruturas culturais, isso significa que temos de ter dinheiro para recuperar património, para construir teatros, auditórios nacionais, para fazer cinema… Vamos ter um crescimento de 30% em relação ao orçamento para a cultura do ano passado. E já temos, de acordo com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, até 2021, vamos ter mais 2,5 milhões de euros para investir na recuperação do património. E esperamos que a cooperação internacional deixe de ser apenas técnica, e nos assista no financiamento também. Temos grandes expectativas em relação a Portugal, porque há um grande património português na cidade velha e que depende de uma parceria forte para que não se perca. Por isso estamos sempre a reivindicar algo mais. Penso que a cultura tem sido uma área secundária mas porque os próprios titulares das pastas não tinham peso político. Eu sou político, não sou um artista que foram buscar. Não sou aquele escritor a quem disseram: “Vem cá, deixa o livro que agora vais ser ministro.” Fiz campanha, bati às portas, defendi a causa cultural, fiz parte do grupo que desenhou o programa do governo e, por isso, não ando aí sobre nuvens, não ando aqui a fazer discursos bonitos. Digo sempre ao primeiro-ministro: “Quer que eu faça a diferença, então preciso de recursos.” Creio que daqui até 2021 vamos ter um aumento significativo no nosso orçamento.

E em relação ao seu trabalho enquanto escritor e artista? Sei que agora é um momento mais difícil para ter tempo, mas quais são as suas aspirações nos próximos anos ou, mais tarde, quando deixar de ser ministro?

Vou voltar a pintar, a escrever. Sempre tive projectos ligados ao sector privado em vários aspectos… Vejo-me como um africano que tem o privilégio de ter relações em todos os países relevantes: Nigéria, Angola, Moçambique, Senegal… Vou aumentar a minha rede de relações e continuar a escrever e a pintar, de certeza absoluta. Tenho saudades de inaugurar uma exposição, e tenho saudades de passar dias a escrever. Sou alguém que vê o seu futuro ligado ao sector privado, não me quero eternizar no serviço público, ser quadro nalgum ministério. Isso nunca me interessou e não me interessa. Sempre vendi quadros, sempre tive vontade de me envolver em projectos, projectos que vão além até de Cabo Verde, e vou continuar a fazer isso. Hoje em dia, e por opção, não faço nada, porque acho que é incompatível. Não posso viver nessa duplicidade. Continuo a escrever, a pintar, mas não exponho, porque sou ministro da Cultura e acho que se o fizesse haveria ali uma carga simbólica, o de ser algo do ministro da Cultura. Ultimamente até tenho escrito livros infanto-juvenis, e vou continuar nessa onda. Mas não vou ter muito destaque enquanto artista nos próximos anos.