Kosovo. “Não sonhas com mais quando não conheces melhor”

Eram crianças quando foram enviados como refugiados para outros países, assim que rebentou a guerra. Hoje não há espaço para muitos sonhos, já que não podem conhecer o que há para lá das fronteiras de alguns dos países vizinhos

Acordar em Pristina não é assim tão diferente de acordar numa cidade tipicamente ocidental. Apesar de a população, hoje em dia, ser quase completamente de origem albanesa, culturalmente muçulmana, os prédios são novos, as lojas que vemos nas nossas ruas também estão cá, os carros que circulam são de topo de gama, há poucos vestígios de religiosos por estas bandas. “É o que dá fugir aos impostos”, diz-nos um dos rececionistas do hostel onde dormimos quando lhe pergunto como é que, com uma economia tão fraca, há dinheiro para carros tão bons.

O Kosovo é um assunto sensível nos Balcãs: os sérvios torcem-lhe o nariz, os bósnios dizem não saber nada e os cidadãos do Kosovo já se conformaram com a situação. Pelo menos é o que nos dizem as dezenas de jovens locais que todos os dias vêm ao terraço do White Tree Hostel para manter a conversa em dia, entre turnos de empregos que lhes pagam contas e intervalos de faculdade. 
Sentada no terraço, observo muitos deles. Têm estilo, são modernos e ousados. Há muitas raparigas com cortes de cabelo mais rebeldes, curtos, pintados. Os rapazes passariam facilmente por jovens de Lisboa ou do Porto, parecem mais velhos do que a data de nascimento do passaporte indica. Desde manhã cedo até à meia-noite, hora a que tem de fechar o bar do hostel, não há uma única música que venha deslocada ou mal pensada numa playlist. “Isto é da erva que se fuma neste país”, diz a rir-se um dos amigos que passam muito do seu tempo ali.

Juntam-se à minha volta, há cervejas na mão de cada um deles. São mais de sete rapazes e uma rapariga, todos eles curiosos sobre a forma como se vive em Portugal. Digo-lhes que um dia têm de visitar-nos. “Não podemos, somos do Kosovo. Estamos presos aqui”, diz-me Duki, de 25 anos. “Enquanto não nos aceitarem como país, o nosso passaporte não vale nada.” Pergunto-lhe como se sente em relação a isso, se há movimentos juvenis que queiram mudar essa realidade. “Nós crescemos a saber que isto era assim. Não sonhas com mais quando não conheces melhor.” O amigo, Gjin, teve outra sorte. “Quando tu nasceste em Portugal, tranquila, nós nascemos na guerra. Com um ano, eu era refugiado na Macedónia. Depois mandaram-me com os meus pais para os Estados Unidos da América. Foi a minha sorte, hoje tenho cidadania e posso ir onde quero”, explica, enquanto cada um deles partilha os países onde foram refugiados em criança. Toda gente fica em silêncio. Aquele que é o país mais jovem do mundo poderia ser um poço de esperança sem fundo; no entanto, aparentemente dizem estar tudo bem. “Temos ar de gente triste?”, pergunta um dos rapazes do grupo à gargalhada, enquanto acende um cigarro.

“Vocês lá fora têm uma ideia errada sobre nós. Como é que cá chegaram? Na internet lemos tantas coisas erradas sobre o nosso país”, continua, enquanto bebe um gole de cerveja.

Conto-lhes do secretismo da viagem, da nossa surpresa ao encontrarmos uma capital tão nova e moderna. Riem-se à gargalhada, quase se orgulham do cenário cinematográfico. “É o que dá as pessoas falarem do que não sabem: quem vem já não quer ir embora” diz-nos um dos rapazes do hostel, que aponta com os olhos para um finlandês que já lá está há um mês. Faz 53 anos no dia seguinte, viaja numa Honda vermelha, era para ter ficado apenas dois ou três dias, mas não consegue deixar Pristina. “Isto é tão bom. Eu amei Portugal, as pessoas de Portugal, mas não quero ir-me embora do Kosovo, talvez amanhã”, diz-me enquanto bebe um shot de tequila às três da tarde.

Lá fora, um grupo de rapazes fuma erva. Mostram-me fotografias no telemóvel de um amigo que lhes enviou uma fotografia com a descrição “já tenho pequeno-almoço”. É uma tigela de cereais cheia de pastilhas ecstasy. As drogas circulam facilmente nos Balcãs e o Kosovo não é exceção. Um dos jovens conta-me que sonha trabalhar na preservação dos lobos. “Um emprego que dê para comer e pagar contas, mas que me faça feliz”, diz-me.

Almoçámos no hostel por 2,60 euros: uma omelete com queijo e uma dose de batatas fritas. Os preços são tão baixos, os salários residuais, pergunto quanto pagam por um quarto no centro da cidade. “Ronda os 70 euros, ganho 250 aqui no hostel. Dá para viver”, comenta o rececionista mais ativo na conversa.

Ao sairmos do hostel em direção à praça principal deparamo-nos com um largo onde circulam várias miniaturas de carros a bateria conduzidos por crianças. Alguns têm mesmo faróis acesos. Os pais também são jovens, é raro verem- -se idosos na rua. No Polo Universitário, em frente à biblioteca, está a decorrer a gravação de um videoclipe. Há um músico com um citfeli – instrumento de cordas típico da Albânia – na mão. Uma rapariga ainda adolescente veste trajes tradicionais. Parece uma boneca, tem olhos claros e pele branca, quase parece desenhada por um artista cerâmico. “Todos os países têm no YouTube uma versão do Despacito, ainda não há nenhuma daqui. Por isso, vou ser eu a fazê-la”, conta-nos Fatmir Makolli, famoso músico nacional, que está orgulhoso de toda aquela produção de televisão, bailarinas e takes que se repetem continuamente.

Drenis tem 19 anos, é filho do produtor deste videoclipe. Estuda Economia na faculdade e desbrava a história do país e da região. O ódio aos sérvios é notório: “Não é aqui na capital que vocês vão ver o que a guerra nos fez. É nas aldeias.” Lamentamos não ter tempo para explorar o interior do país. “Estão a ver aquela igreja ortodoxa ali? Os sérvios construíram-na em 1995, no meio da guerra, para que pudessem reclamar a área à volta. Têm a mania que são espertos, mas nunca deixámos que a terminassem. Está ali só para nos humilhar e não podemos deitá-la abaixo”, diz com desprezo enquanto olha para a inacabada construção, bem no meio do campus universitário. Em 2016, depois de um incêndio, alguns membros da comunidade sérvia tentaram, sob o pretexto de limpar, reconstruir e pintar a igreja, que sempre permaneceu vazia e que nunca chegou a ser terminada, mas o município impediu que continuassem.

A rapaziada que para no White Tree Hostel não partilha desse ódio aos sérvios. Drin, de 27 anos, não tem paciência para um mundo em que as pessoas se querem mal. “A guerra não foi nossa, eu não lutei por nada. Uma vez, no Facebook, fiz um amigo num grupo e vi que era sérvio. Eu perguntei-lhe, ‘sabes que sou do Kosovo?’, e ele disse que não queria saber. A nossa geração não quer mesmo saber, somos mais inteligentes do que isso.”