Em 1962, os ecos da Segunda Grande Guerra ainda faziam tremer muitas instituições.
Nem todos se encontravam preparados para aceitar sucessos de atletas alemães ou japoneses, sobretudo nos chamados desportos de combate.
É que combate fazia soar muitas campainhas…
No entanto, já vários anos antes, num artigo publicado na revista “Collier’s”, um opinador avisado traçava este cenário: “Se a a atitude das autoridades americanas não mudar, daqui a dez anos surgirá uma classe de pugilistas mais leves constituída por todos aqueles rapazes que sofrem, hoje, tanto a desconsideração dos japoneses como dos americanos”.
Sábia previsão.
As feridas da guerra são, por vezes, impossíveis de sarar.
O que estava em discussão era o alimentar de um raiva surda contra um ocupante que, se não o era absolutamente de facto, era-o de pressão social. Submissiva.
Uma nova gesta de japoneses crescia numa existência de rebeldia e de agressividade contra essa intimidação.
Por uma questão rácica, os primeiros grandes pugilistas japoneses do pós-guerra surgiram nos pesos mais leves.
E com uma rapidez impressionante.
Em 1954, Yoshio Shirai conquistava o título mundial de pesos mínimos. Ser-lhe-ia retirado, pouco depois, pelo argentino Pascual Perez.
E mais quatro filhos do Sol Nascente apareciam como pugilistas de enorme nível – Terno Kosaka, pesos-leves; Katsukochi Aoki, levíssimos, Kazuo Tokayama, meios-leves e Misahiko “The Fighting” Harada, pesos-mínimos.
É precisamente de Harada que quero falar hoje.
Em Outubro de 1962 estava na verdura dos seus 19 anos.
Mas isso não evitou que aparecesse destacadamente nos jornais de todo o mundo.
Era um daqueles jovens japoneses que lutava pela honra perdida com a valentia lendária dos samurais.
Curiosamente, o seu ídolo não era Yoshiro Shirai mas Pascual Perez.
No dia 10 de Outubro de 1962, Harama, o “Batalhador” foi grande, apesar do seu metro e sessenta. Assim por extenso, se estivesse na vertical, talvez fosse mais alto do que ele, o metro e sessenta.
O seu orgulho nacional era badalado pela imprensa japonesa como se hasteasse uma bandeira de vitória em Okinawa.
Pomo Kingnetch era tailandês. Na altura usava-se mais o termo siamês. À moda de O Rei e Eu, com Yull Brynner, recordam-se?
O orgulho de Tóquio. “Fighthing Harama” jogava em casa, é certo: Tóquio – Kuramo Kokugikan Sumo. Um palco habituado a receber lutadores bem mais pesados e disformes, de roupa ridiculamente reduzida.
Pois Harama, o “Batalhador” esteve-se nas tintas para o Rei do Sião e para os elefantes de Ayuthia. Desde o primeiro segundo, lançou-se furiosamente sobre o seu adversário como um “kamikaze”, esses ventos destruidores de frotas inteiras de navios com as suas ondas alterosas e incontroláveis.
Kingnetch defendia o título pela terceira vez.
Podia ser o favorito, mas não tardou a ser massacrado nos sobrolhos ficando com a face ensanguentada pelos cortes cirúrgicos do jovem Harada.
O público troava.
Observava o campeão desfazendo-se aos poucos.
Uma alma nipónica fervia e dava largas à sua incontida alegria rejuvenescida.
Sabe-se como os japoneses encaixam mal as derrotas: sentem-nas como desonras.
Harada, o miúdo amiudado, cinco-réis de gente: era ele e as circunstâncias do que o rodeava.
Não permitia ao opositor que desse um passo. Encostava-o ao canto e esmurrava-o de forma consistente e continuada.
O campeão não resiste muito mais.
Está desfeito, um esgar de sofrimento fecha-lhe a cara, um desânimo irreversível prende-lhe os músculos. Um tremendo um-dois atira-o ao tapete. Estavam decorridos dois minutos e vinte e nove segundos do décimo-primeiro assalto.
No ano seguinte, em Bangkok, os acontecimentos inverter-se-iam. Kingnetch recuperava o título.
O brasileiros, por exemplo, recordam com saudade os seus famosos “round” contra Éder Jofre.
Harada teria a oportunidade de voltar a ser campeão e foi-o.
Mas ninguém, em Tóquio, se esquecerá do seu primeiro título, aos 19 anos.
Era uma vitória contra o derrotismo, contra a subalternidade, um revigorar da auto-estima de um país inteiro.
Ficou, a partir daí, preso ao peito de todos os japoneses. Podem chamar-lhe vingança, se quiserem, a palavra não é descabida.
Era um tempo de recuperar sonhos e, sobretudo, de recuperar uma certa ideia de país que se perderam nas longas batalhas do Pacífico e nas humilhações assustadores de Hiroxima e Nagasaki.
Mais popular “boxeur” da história do Japão, sorria do alto do seu metro e sessenta e sentava-se no topo do mundo…