«Luto contra a insanidade mas continuam-me a chamar de louco»

Através desta frase, no Impasse à Rua Alberto de Oliveira, em Lisboa, cuja fotografia me foi enviada pela Francisca, o seu autor afirma, quase desesperadamente: «Luto contra a insanidade mas continuam-me a chamar de louco». E é uma afirmação desesperada porque o autor declara que procura, a todo o custo, lutar contra a insanidade, procura…

Através desta frase, no Impasse à Rua Alberto de Oliveira, em Lisboa, cuja fotografia me foi enviada pela Francisca, o seu autor afirma, quase desesperadamente: «Luto contra a insanidade mas continuam-me a chamar de louco». E é uma afirmação desesperada porque o autor declara que procura, a todo o custo, lutar contra a insanidade, procura tornar a sua vida o mais normal possível, sem sucesso, porque continuam a considerá-lo louco ou inadaptado.

Muitos são os que pensam como afirma, ironicamente, Alberto Caeiro: «Que me importam a mim os homens / E o que sofrem ou supõem que sofrem? / Sejam como eu – não sofrerão / Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os / outros, / Quer para fazer bem, quer para fazer mal». E considero que este poema, na linha do pensamento expresso por Alberto Caeiro é, face à realidade, muito irónico porque, efetivamente, só importando-nos com os outros daremos sentido à própria vida.

Ora, aquilo que é expresso na frase fotografada é uma realidade atroz, porque, habitualmente, temos tendência a julgar os outros pela imagem que deles fazemos quando os vemos, quando observamos os seus comportamentos, sem sequer nos lembrarmos de que há uma pessoa dentro da imagem que vemos, uma pessoa que sente, que pensa, que vive. E, muitas vezes, somos cruéis ao apelidar os outros loucos, velhos, chatos, gordos ou pirosos. Qualquer epíteto que lhes coloquemos é sempre uma mera sinédoque, uma redução da pessoa a uma única característica, destacada por nós e pela qual nos guiamos.

Quantas vezes um louco não poderá sê-lo apenas porque não tem com quem falar (não me refiro, obviamente, a uma doença mental diagnosticada, mas a comportamentos desviantes que nós, não médicos, designamos genericamente como tal)? De igual forma, um velho é sempre mais do que a idade que tem, é uma pessoa com experiência de vida, relevante ou irrelevante, mas sempre mais do que a mera idade; um chato é apenas alguém que se torna aborrecido por querer chamar a atenção, por querer atrair para si os outros sem saber como fazê-lo; um gordo é muito mais do que o peso que exibe e o seu peso não define a sua personalidade; e um piroso é só alguém que veste roupa de que não gostamos…

Ora, todas estas «classificações» têm que ver connosco, com o nosso mundo, com os nossos gostos, com aquilo que toleramos ou não. Porém, os outros têm existência individual e, muitas vezes, esquecemo-nos disso. Os outros existem para além de nós e do nosso grupo de amigos, com quem partilhamos vivências, gostos, imagens comuns. Os outros são realidades distintas que não têm de nos agradar. Temos apenas de respeitá-los, porque o mundo não gira à nossa volta, por mais que nos custe aceitar tal realidade.

O mundo existe muito para além de nós e temos de aceitar os outros como são. Podemos não querer ser seus amigos, podemos nem sequer querer interagir com eles. Estamos no nosso direito. No entanto, o que não podemos é classificá-los e ostracizá-los num grupo, troçando deles só porque são diferentes de nós, porque nós não os aceitamos.

O próprio conceito de bullying, de que tanto se fala hoje em dia, assenta nesta incapacidade para reconhecermos a individualidade do outro, e na crença de que somos superiores e podemos, com pleno direito, isolar os outros e publicamente troçar das características de que não gostamos.

Diz Clarice Lispector, numa crónica publicada no Jornal do Brasil: «meu caminho não sou eu, é o outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.»

Ora, o problema vai mais longe quando não reconhecemos esta verdade, e a violência, física ou psicológica, é usada para tornar o outro uma vítima dos nossos preconceitos. Como diz Inês Cardoso, em crónica recente: «Não somos deuses, ao contrário do que parece quando agimos como se fôssemos imortais. Mas cada vez que falamos ou abrimos as mãos abre-se à nossa frente uma infinidade de opções. Temos o poder fabuloso de espalhar centelhas de vida ou, pelo contrário, de distribuir palavras e gestos que moem e matam por dentro. A escolha não deveria merecer dúvidas, pois não?».

E se fôssemos nós no lugar da vítima, como nos sentiríamos? Como nos sentiríamos no lugar da pessoa que escreveu esta frase na parede? A que ponto chegou o seu desespero para se expressar publicamente desta forma? A que ponto ferve o desespero dentro desta pessoa?

 

Maria Eugénia Leitão

Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services