Um homem cercado

Na madrugada de segunda-feira, falando na sede da Proteção Civil em Carnaxide, um jornalista perguntou a António Costa se podia garantir que tragédias como a do passado fim de semana ou de Pedrógão Grande não voltariam a acontecer. Costa, imperturbável, respondeu que não só não podia garantir nada como era praticamente certo que iriam repetir-se,…

Na madrugada de segunda-feira, falando na sede da Proteção Civil em Carnaxide, um jornalista perguntou a António Costa se podia garantir que tragédias como a do passado fim de semana ou de Pedrógão Grande não voltariam a acontecer.

Costa, imperturbável, respondeu que não só não podia garantir nada como era praticamente certo que iriam repetir-se, dadas as características da floresta portuguesa que não se mudam em dias nem em anos. 

Surpreendido com a resposta, outro jornalista perguntou: «Acha que os portugueses vão entender o que está a dizer hoje, que isto vai acontecer mais vezes?» – ao que António Costa respondeu: «Claro».

Percebia-se a ideia.As pessoas têm de compreender que o Governo não tem uma varinha mágica para resolver todos os problemas.

Mas o modo como António Costa se exprimiu revelou um primeiro-ministro insensível, arrogante e sentado em cima do seu poder.

Na altura em que Costa fez aquela declaração, já havia uma enorme devastação e vários mortos confirmados.

Assim, ao dizer friamente que o Governo nada poderia fazer para evitar novas catástrofes e proteger as pessoas, estava a prolongar (e ampliar) a angústia de populações já traumatizadas.

O facto de não ter percebido esta evidência mostra que já vivia fora da realidade.

Cheio da sua importância, achava que podia dizer tudo o que lhe vinha à cabeça. 

Mas enganava-se: nessa altura já não era um homem todo-poderoso mas um primeiro-ministro cercado.

Cercado, em primeiro lugar, pela opinião pública.

Depois de Pedrógão, os portugueses deram o benefício da dúvida ao Governo e não o penalizaram.

Acharam, mesmo, que o Executivo fora vítima de circunstâncias excecionais – e até chegaram a criticar a oposição por tentar ‘tirar benefício político’ da tragédia.

Mas agora tudo foi diferente. 

Se em Pedrógão era natural que o Governo tivesse sido apanhado de surpresa, agora já estava avisado – sendo por isso inadmissível cometer os mesmos erros. 

Na primeira ‘cai qualquer’, na segunda ‘cai quem quer’.

Para a maioria dos pessoas, se há quatro meses Costa podia ser visto como uma vítima das circunstâncias, depois do último fim de semana passou a estar sentado no banco dos réus.

Em segundo lugar, o primeiro-ministro está cercado pelo Partido Comunista.

Ironicamente, as autárquicas ganhas pelo PS só complicaram a vida ao Governo.

A tremenda derrota do PCP fez os comunistas arrepiarem caminho no apoio incondicional ao Executivo socialista, começando a fazer exigências, a impor condições, a fazer greves, a planear manifestações.

Embora o PCP não seja eleitoralmente um grande partido, tê-lo como adversário não é brincadeira nenhuma – pois arrasta com ele a CGTP, o poderoso sindicato dos professores, a presidência de muitas câmaras, etc.

E condiciona a opinião.

Em terceiro lugar, António Costa está cercado pelo Presidente da República.

Durante um ano e meio Marcelo andou com ele ao colo, pôs-lhe as duas mãos por baixo, elogiou-o, fez-lhe todas as vontades e até atacou a oposição.

Mas em Pedrógão tudo mudou. 

O facto de Costa o ter deixado sozinho a consolar as populações, enquanto partia tranquilamente para férias, não pode ter agradado a Marcelo.

Aliás, no sábado passado, o Presidente foi a Pedrógão com o objetivo expresso de pressionar o Executivo e dizer-lhe que não esquecia o que ali se passara e as promessas feitas.

Ora, no dia seguinte, aconteceu o que aconteceu.

E se Marcelo já estava incomodado, imagine-se como ficou perante uma nova tragédia.

No seu (excelente) discurso de terça-feira, pôs tudo em causa – começando por se pôr em causa a ele mesmo, dizendo que o seu mandato fica fragilizado por estes 100 mortos.

E, se o Presidente se pôs em causa a si próprio, isso significava que punha tudo em causa daí para baixo: o primeiro-ministro, a ministra da Administração Interna (que se demitiu logo), a Proteção Civil, etc.

Um arraso – feito de uma forma sentida, elegante, incisiva, ao mesmo tempo humilde perante as populações e assertiva perante as instituições.

Deixo o cerco da oposição para o fim, porque é o que menos conta agora.

Mas também daí António Costa só pode esperar hostilidade.

No fundo, o primeiro-ministro apenas conta com o PS e com Catarina Martins.

Na política, tudo muda num instante.

A partir desta nova catástrofe, Costa passou a ser um homem fragilizado.

Situação que agravou com as suas declarações públicas subsequentes, que impressionaram pelo despropósito, insensibilidade e banalidade.

Para já não falar na resistência em pedir desculpa ao país (facto que o Presidente não perdeu a oportunidade de sublinhar).

O vento mudou de sentido.E isso vê-se num simples facto que ainda ninguém referiu: até domingo passado, António Costa passava alegremente entre os pingos da chuva e não se molhava.

Podiam morrer pessoas em Pedrógão, roubar-se armas em Tancos, que nada era com ele.

O problema era com a ministra, era com o ministro, era com a Proteção Civil, era com as chefias militares.

Ora, desta vez, António Costa ficou no olho do furacão: não pôde fugir.

E isso é uma mudança decisiva.