Um Governo à deriva

O Presidente saiu finalmente da zona de conforto e, em Oliveira do Hospital, proferiu uma das mais relevantes declarações do seu mandato. Foi sensível ao sofrimento das populações perante a repetição da tragédia do fogo. Foi concludente ao desafiar o Parlamento para que «soberanamente clarifique se quer ou não manter em funções o Governo».  Em…

O Presidente saiu finalmente da zona de conforto e, em Oliveira do Hospital, proferiu uma das mais relevantes declarações do seu mandato. Foi sensível ao sofrimento das populações perante a repetição da tragédia do fogo. Foi concludente ao desafiar o Parlamento para que «soberanamente clarifique se quer ou não manter em funções o Governo». 

Em poucas horas, a ministra, que lamentava não ter tirado férias, demitiu-se. E o primeiro-ministro – que tirou férias com Pedrógão ainda a arder – não teve outro remédio senão recuar na soberba e aceitar a renúncia. 

Repetiu-se a tragédia. Repetiu-se Pedrógão Grande. Repetiu-se estupidamente a perda de dezenas de vidas humanas e de haveres. Repetiu-se o caos. Repetiu-se a incompetência e a descoordenação de meios e de pessoal no terreno. Repetiram-se as falhas da Proteção Civil. Repetiu-se o colapso do Estado no socorro às populações cercadas pelo fogo. 

O Presidente da República, em cima dos acontecimentos, já exigira «atos e não palavras». A resposta que obteve de António Costa na noite de segunda-feira, com incêndios ainda ativos, foi uma enxurrada de palavras. Discurso frio, distante do drama e da dor de vidas perdidas, apenas movido pelo apego ao poder e apostado em controlar os danos de imagem, sob a inspiração de um qualquer focus group. 

Por mais de uma vez, Marcelo Rebelo de Sousa exigiu o apuramento de responsabilidades, «doa a quem doer», como fez em Tancos e em Pedrógão. 

Confrontou-se invariavelmente com um muro defensivo erguido pelo primeiro-ministro – com a argamassa das frases estudadas, redondas e ocas, incapaz de pedir desculpa ao país pela inoperância do Estado.

O desnorte contaminou definitivamente este Governo. É um filme negro com atores atarantados sem saberem nada do seu papel.

A questão que doravante se coloca ao Presidente da República não é este ou aquele ministério, este ou aquele organismo – é o próprio primeiro-ministro, que se mostra incapaz de tirar as consequências políticas por mais de uma centena de mortos e feridos em escassos meses, e pela sua notória inépcia para chefiar um Executivo que não se limite à gestão habilidosa da ‘geringonça’ e das expectativas do funcionalismo público e dos pensionistas. 

Temos um primeiro-ministro que se compraz em ser porta-voz de boas notícias – mesmo que não lhe caiba o mérito – mas que deserta nas dificuldades. 

Portugal está à mercê de circunstâncias anómalas, que tardam em ser investigadas. Ironicamente, a maior parte do arsenal de guerra desaparecido de Tancos seria localizado esta semana, nas imediações da unidade, não pelas polícias mas através de uma denúncia anónima. Surreal.

Sabe-se que está montada uma ‘indústria do fogo’, que depende dos incêndios para faturar. Quanto se gastou este ano no combate aos fogos que deflagraram de Norte a Sul? Qual foi a despesa com meios aéreos, consumíveis, equipamentos e pessoal? Seria importante saber quanto investimos, apesar de as populações e o património continuarem desprotegidos… 

Não é possível a indiferença diante da catástrofe. Em poucas horas ardeu o Pinhal de Leiria, plantado há 700 anos. Uma mata nacional ao abandono. A incúria foi longe demais. A negligência também. A floresta está a desaparecer no meio de cinzas e de espetros. Por impulso, até o histórico Manuel Alegre reconheceu, num artigo de opinião, a «falência do Estado» por «desleixo, incompetência e amiguismos».

Estranhamente, mais à esquerda, o Bloco e o PCP guardaram um silêncio comprometido e cúmplice, apenas interrompido pelo embaraço do anúncio, por parte do CDS, da moção de censura que vai levar ao Parlamento, com o apoio antecipado do PSD. 

Se salvarem o Governo da (merecida) queda, ficarão amarrados à vergonha de um país em chamas, convidado a ser «proativo» e a «auto proteger-se» para cobrir a ineficiência do Estado. 

Leiam-se os relatórios mais recentes sobre a tragédia de Pedrógão, em especial o da Comissão Técnica Independente, que apontam para falhas muito concretas na Proteção Civil e na cadeia de comando – que foi nomeada por este Governo, substituindo comandantes experimentados por boys com cartão partidário. 

Ao admitir, com ligeireza, que a fatalidade poderá repetir-se, o primeiro-ministro está a semear incertezas no país, numa antecipação calculista para não se poder dizer que não avisou. 

Basta de teatro, parafraseando Passos Coelho. É mau demais. O primeiro-ministro em exercício faria um favor ao país (e já agora ao Presidente da República, que lhe mostrou um cartão amarelo a ficar vermelho) se seguisse o exemplo da ex-ministra Constança Urbano de Sousa, recolhendo a férias. O país agradecia-lhe. E nem dava pela falta…