A carta de Constança é muito reveladora

A carta da ministra da Administração Interna dá um retrato penoso daquilo que são os maiores defeitos do atual primeiro-ministro: teimosia, arrogância, autossuficiência.

Nestes quase dois anos de Governo, António Costa tem-se genericamente comportado como uma espécie de Leonardo di Caprio no momento em que no filme Titanic grita: «I’m the king of the world».

 É verdade que a vida lhe correu, em vários aspetos, muitíssimo bem. Quem senão um sobredotado conseguia convencer o PCP e o Bloco de Esquerda a apoiarem um Governo formado pelo PS que, apesar dos quatro anos duros da troika sob a tutela do PSD e do CDS, cometeu a proeza de não ganhar as eleições? Nestes dois anos não faltou nem sorte nem talento político a António Costa: os acordos com os parceiros de esquerda foram sempre muito mais fáceis do que a leitura da realidade anterior à geringonça poderia prever e o sucesso económico do Governo tornou-o um case study em toda a Europa. Era, afinal, possível uma alternativa com o apoio de esquerda, que juntava devolução de alguns rendimentos, cumprimento dos compromissos de Bruxelas, diminuição da taxa de desemprego, aumento do crescimento, o défice mais baixo da democracia. O milagre.

Há 15 dias, o PS ganhou as eleições autárquicas, apesar dos mortos no incêndio de Pedrógão e do escândalo do roubo das armas de Tancos (reaparecidas esta semana). Enquanto Marcelo pegava no dossiê Pedrógão e Tancos muito a sério, Costa foi de férias. Não aceitou a demissão da ministra que se encontrava, à vista de toda a gente, sumamente fragilizada (e esta semana, a própria confessou-o).

A fase «I’m the king of the world» durou até à comunicação ao país do Presidente. Costa não percebeu o que aconteceu no domingo no país que dirige, como o comprovou a intervenção desastrada, a ironia absurda e o desaparecimento do Estado contido na aparição do primeiro-ministro na madrugada de segunda-feira. Na segunda-feira à noite, essa dissociação da realidade manteve-se.

António Costa não conhece o país que dirige – só se ‘dá bem’ em Lisboa e no meio das suas elites. Marcelo, que também é originário da elite lisboeta, conhece o país de que é chefe de Estado. Essa é uma profunda diferença entre os dois. No Parlamento, Costa pareceu ter aprendido algumas lições de Marcelo. É esperar para ver.