Salvar a estação e perder tudo

O fogo chegou a cercar a estação de comboios do Vimieiro, onde os 350 passageiros do Sud Express ficaram retidos. João Ventura ajudou a que ficassem a salvo das chamas.

João Ventura ainda se emociona ao contar os pormenores daquela noite do incêndio. O chefe da estação do Vimieiro, concelho de Santa Comba Dão, leva as mãos aos olhos e tenta conter as lágrimas, enquanto a voz embargada denuncia o que jamais esquecerá.  Aos 61 anos já viu muita coisa – no primeiro mês de trabalho como chefe de estação teve de dar assistência a uma senhora cujas pernas tinham sido cortadas por um comboio e ficar com ela até à chegada dos bombeiros, «mas isto foi pior», garante.

Quando o vimos pela primeira vez estava na janela do primeiro andar da estação, meio debruçado, a colocar a bandeira de Portugal a meia haste, depois de já ter feito o mesmo com a da empresa. Naquele domingo, como sempre que acontece em caso de incêndio, João Ventura foi chamado para a estação de onde acabara de sair, porque nestas circunstâncias a CP aciona o seu plano de emergência para controlar o tráfego ferroviário em função dos perigos na linha.

Eram 21h e no Vimieiro não havia comunicações, nem SIRESP, nem telemóveis, na estação acabaram por reter o comboio Sud Express (que liga Lisboa a Hendaye, na fronteira com França) com 350 passageiros. Por volta da meia-noite, na encosta em frente à estação começam a subir as chamas que galgaram o Dão.

João Ventura, com o seu colega e a ajuda de uns quantos passageiros, começaram a combater o fogo que consumia as primeiras casas  e ameaçava encurralar aquelas centenas de pessoas, no meio de alguma confusão porque «é difícil manter a acalmia com tanto passageiro».

Entre o combate às chamas e o cuidado das pessoas, João Ventura conseguiu contactar a Câmara Municipal de Santa Comba Dão, que disponibilizou um autocarro para transportar os passageiros para longe do perigo. O autocarro chegou por volta da uma da manhã e começou a fazer viagens para levar toda a gente à vez. «O último autocarro saiu daqui às 2h30 e por pouco não foi apanhado pelas chamas», conta.

Nem o combate ao incêndio, nem o desespero dos passageiros, nem as 25 horas de trabalho ininterrupto no corpo, nem o facto de ter tido de correr de porta em porta na rua da estação para conseguir que as pessoas idosas deixassem as suas casas para fugir às chamas que se aproximavam, nem o esforço para desviar os seis carros estacionados que estavam a ser ameaçados pelo fogo, nada disso o marcou tanto como a sensação de impotência quando a mulher conseguiu telefonar-lhe a dizer que o fogo andava a rondar a casa deles e ele sem nada poder fazer para defender o que era seu.

«Foi a coisa que mais me custou. Ouvir a mulher a pedir ajuda e não poder sair daqui para ajudar os nossos mais queridos. É isso que dói», afirma e tem de silenciar a voz para conter as lágrimas. Quando volta a falar, o som ainda falha ligeiramente, como que escorregando numa última lágrima reprimida.

«Fiquei sem nada. Fiquei só com a casa, perdi os animais. Como me custou chegar à fazenda e ver os animais todos mortos», explica antes de deitar para trás essas emoções próprias e colocar o dever de chefe da estação de comboios do Vimieiro à frente: «Também tínhamos aqui 350 pessoas. Não são família, mas são seres humanos. Alguns tiveram mesmo de ser socorridos pelo INEM por causa da inalação de fumo porque havia fogo de um lado e fogo do outro e o fumo era muito».

A rua da Estação e a pequena rua dos Resineiros estão pejadas dos escombros que o fogo deixou à sua passagem. Lá para trás muitas mais casas se perderam, a encosta ficou marcada a fogo e pedras. O edifício técnico da estação e o outro anexo servem com a sua brancura exposta ao sol como contraste flagrante do antes e depois do incêndio. Os dois edifícios foram salvos pela ação de João Ventura, do seu companheiro da CP e dos passageiros que ali tiveram paragem forçada e batismo de combate às chamas.

«Hoje comovo-me muito, mas naquela altura não tive pânico», confessa o chefe da estação.  Que ainda chegou a rebentar o portão da pensão Ambrósia para resgatar o carro do proprietário, mas a GNR já não o deixou. O perigo não valia um automóvel.