Estranha forma de morrer

Ver o carro dele parado naquela rua, num local onde às vezes deixo o meu, e saber que fora para ali conduzido por uma pessoa conhecida, foi uma sensação estranha.

Há dois meses, no vendaval noticioso diário, uma notícia captou-me a atenção: um fotógrafo de 58 anos, ex-marido de Clara Pinto Correia, estava desaparecido. Saíra de casa à noite e nunca mais fora visto. Percebi depois que era a mesma pessoa que fizera uma exposição de fotos da mulher a ter orgasmos.

Estamos num tempo esquisito. Um homem que se ocupa a fotografar os orgasmos da mulher, e uma mulher que se deixa fotografar nesses momentos íntimos, são protagonistas e vítimas de uma época  confusa, onde se perderam os valores e o sentido do ridículo – e em que muita gente caminha sem rumo em direção sabe-se lá a quê.

Há uns anos, um artista fez uma performance que consistiu em defecar em público. Esta exposição de imagens de Clara Pinto Correia teve a vantagem de nos poupar à presença física dos protagonistas, limitando-se às fotos.

A exposição não me interessou nada – e nem sequer tive a curiosidade de saber quem era o fotógrafo. Como Clara vivera algum tempo nos EUA, até admiti que fosse um excêntrico cidadão americano. Pelo que, quando vi a notícia sobre o desaparecimento do homem, não me apercebi logo de quem era. Só mais tarde, ao ler os jornais com mais atenção, constatei que o conhecia muito bem.

No fim dos anos 80, recebi no meu gabinete do Expresso um cartoonista ainda pouco conhecido, com uma grande pasta debaixo do braço, que me queria mostrar os seus trabalhos. Desenhava bem e tinha ideias, só que havia um obstáculo difícil de ultrapassar: o cartoonista ‘oficial’ do Expresso era (e ainda é) o António [Moreira Antunes], um artista de nível internacional, no qual o jornal tinha muito orgulho – tornando-se impossível a entrada de outra pessoa no mesmo espaço.

Mesmo assim, o Pedro-Palma – é dele que estou a falar – ainda me visitou algumas vezes. E depois tornou-se mesmo colaborador regular do Expresso quando (segundo penso) a secção de Economia se autonomizou, passando a constituir um caderno próprio. Fiquei satisfeito quando isso aconteceu, pois o Pedro-Palma merecia ser apoiado e o seu trabalho divulgado.

Ele deixou então de me procurar – deslocando-se diretamente à respetiva secção no velho edifício da Duque de Palmela para entregar os trabalhos. Passei a vê-lo esporadicamente. E, bastante tempo mais tarde, não me apercebi de que tinha abandonado o cartoon para se dedicar à fotografia.

Como se calcula, tive um choque ao perceber que era ele o fotógrafo desaparecido. E logo a seguir deu-se outra coincidência que me impressionou: o carro dele apareceu numa rua sem saída que conheço muito bem, pois é lá que também estaciono o automóvel quando vou almoçar a um restaurante em S. Pedro de Sintra que frequento com regularidade.

Ver na TV o carro dele parado naquela rua, num local onde eu às vezes deixo o meu, e saber que fora para ali conduzido por uma pessoa que eu conhecia bem, foi uma sensação estranha. Incómoda. Que mais estranha se tornou quando soube que o seu corpo  tinha sido encontrado no interior da bagageira do automóvel. Ou seja: ele estava lá dentro quando as câmaras das televisões filmavam em direto o carro estacionado naquele beco sem saída.

Com as notícias do desaparecimento e da morte de Pedro-Palma, vieram outras. Soube que ele teve uns últimos anos de vida muito tristes. Pouco tempo depois da exposição, divorciou-se da mulher – o que era previsível. E teve um grave problema de saúde, um aneurisma da aorta, a que foi operado com êxito mas de cujo internamento resultou uma infeção hospitalar que o obrigou depois a 7 operações em 4 anos. Nesse período perdeu um rim e ficou com enormes limitações. Um pesadelo! Há pessoas que parecem guardadas para expiar as culpas sabe-se lá de quem.

Mas o mais terrível foi saber ter sido ele próprio a enfiar-se na bagageira do carro com umas garrafas de gin, com o objetivo de morrer ali. Que estranha forma de morrer! Não seria mais natural sentar-se num banco do automóvel, abrir as janelas, e depois então embebedar-se até não poder mais, adormecendo para sempre a contemplar a natureza?

Não: ele quis morrer escondido, sem que o vissem nem ele visse nada. Talvez por pudor de se expor morto aos olhares das pessoas – sabendo, como fotógrafo, o valor da imagem. Ou talvez para se proteger do mundo, como se fosse um regresso ao ventre materno.

Pedro-Palma escondeu-se de todos e de si próprio. Procurou um casulo, um esconderijo onde se sentisse seguro, onde pudesse morrer como se nunca tivesse nascido.