O Japão repensa o pacifismo

Abe quer mudar a postura pacifista do pós-guerra. A opinião pública, influenciada pelas expansões da China e Coreia do Norte, começa a inclinar-se na sua direção.

Um dos mais vastos e sofisticados exércitos no mundo não é propriamente um exército. E isso acontece porque as forças japonesas, em toda a dimensão dos seus 250 mil militares, caças de quinta geração, tanques de quarta e das recém-estreadas fragatas, existem numa espécie de limbo interpretativo do nono artigo da Constituição, o mesmo em que o país, ainda por reerguer ou reconstruir dos escombros da II Guerra, prometeu renunciar “para sempre” ao direito à guerra.

Não se sabe com certeza se o artigo foi concebido pelos generais norte-americanos que ocuparam o Japão em 1945, como suspeitam muitos historiadores, ou se surgiu de facto a Kijuro Sidehara, o primeiro líder do pós-Guerra, quando este viajava de comboio para Tóquio, como sustenta a versão oficial. Sabe-se, contudo, que o país construiu uma identidade pacifista em parte com base nessa promessa. E que ela em breve pode desaparecer.

O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, quer uma nova interpretação do artigo pacifista para libertar de algumas amarras as Forças de Autodefesa, nome dado ao exército que hoje conserva quase unicamente funções de proteção territorial. Isso, pelo menos, é o que Shinzo Abe passou a dizer publicamente assim que se confrontou com os primeiros obstáculos para anular o artigo, como prometeu na campanha para o seu primeiro mandato, em 2012.

Ares de nacionalismo

Nesses anos, Abe defendia abertamente que a cláusula já não faz sentido num mundo em que a China se tornou numa das incontornáveis potências militares mundiais e que a Coreia do Norte dispõe de armamento convencional e nuclear capaz de destruir o arquipélago japonês.

“O ambiente de segurança japonês mudou e precisamos de fortalecer a segurança nacional”, afirmava então, mais abertamente representando a brisa nacionalista que começou a ganhar forma num país economicamente estagnado, em risco constante de ser bombardeado, perdendo para as reivindicações territoriais de Pequim e vendo-se ultrapassado na competição tecnológica pela Coreia do Sul – países que chegou a ocupar.

O Abe de hoje está mais contido, mas não menos dedicado à reforma constitucional. No domingo, apesar de uma sucessão de escândalos e uma taxa de popularidade abaixo da linha de água, Shinzo Abe conquistou a segunda maioria de dois terços consecutiva, o que lhe dá armas poderosas para iniciar o processo de revisão do Artigo 9.

Como sinal à oposição e reconhecendo que a opinião pública está, no mínimo, dividida, o primeiro-ministro prometeu esta semana abandonar o prazo-limite para abordar o tema, que estabelecera para 2020.

“Conquistámos uma maioria de dois terços na bancada do governo, mas é necessário procurarmos um entendimento abrangente com a oposição”, disse o primeiro-ministro, falando da revisão constitucional, que tem de ser aprovada pelos deputados, mas também em referendo. “Depois vamos tentar conquistar a consciência das pessoas de forma a atingirmos uma maioria no referendo.”

Campanha espinhosa

A consciência é um imbróglio. Uma sondagem realizada antes das eleições pela NHK sugere que 32% dos japoneses estão a favor da proposta de Abe, 21% se opõem e 39% não sabem. Apesar da indefinição no eleitorado, Abe tem motivos para sorrir.

Há poucos anos, antes do terramoto de 2011, por exemplo, a mesma sondagem teria quase certamente resultado numa rejeição em larga medida das propostas antipacifistas. A intervenção das Forças de Autodefesa nas operações de resgate que se seguiram ao maremoto e desastre nuclear em Fukushima contribuíram para melhorar a imagem dos militares no país.

Os raptos mediáticos de jornalistas japoneses pelo grupo Estado Islâmico e a crescente ameaça da Coreia do Norte parecem ter feito o resto.

De acordo com uma sondagem realizada pelo gabinete do primeiro-ministro, os japoneses interessados em atividades militares rondavam os 71% em 2015. Em finais dos anos 80, estavam nos 55%.

As mudanças são mais vastas. Os treinos militares em aberto esgotam hoje audiências e as televisões passam animes em que as Forças de Autodefesa combatem monstros sobrenaturais. Pelo sétimo ano consecutivo, o governo japonês quer mais fundos para a Defesa e um avançado sistema antimíssil norte-americano, o Aegis Ashore, que conseguirá intercetar dispositivos balísticos para lá da atmosfera.

Nas televisões discute-se acesamente a compra de mísseis precisos e capazes de atingir plataformas norte-coreanas antes de estas lançarem os seus dispositivos, o que, a acontecer, abriria um precedente ao princípio de autodefesa que, com uma grande alteração em 2015, ainda rege o exército.

Abe, além disso, tem diante si uma oposição fraturada que não foi capaz de capitalizar num momento em que a taxa de reprovação ao primeiro-ministro superava os 50% – ainda assim muito inferior à que se registava antes de Pyongyang ter disparado dois mísseis sobre território japonês.

“O ânimo do público em geral pode estar a modificar-se se esta ameaça continuar a aumentar”, argumenta Masko Toki ao “New York Times”. um investigador do Instituto de Estudos Internacionais de Middlebury.