Marcelo era bonzinho com o Governo, não era?

Os socialistas que pensaram ter obtido com Marcelo ‘uma maioria, um Governo e um Presidente’, não tinham percebido nada

A extraordinária relação institucional que o Presidente da República e o primeiro-ministro conseguiram estabelecer desde o início não foi bem compreendida nem por um lado (o PS do primeiro-ministro) nem pelo outro (o partido a que pertence ainda o Presidente da República). 

Do lado do PSD de Passos Coelho, as reações àquilo que parecia a coabitação perfeita eram péssimas. As acusações de que Marcelo andava com o governo «ao colo» multiplicavam-se. Só faltava acusar Marcelo de ser de esquerda.

A verdade é que o Presidente não fazia mais do que os seus antecessores fizeram com os governos que encontraram em funções quando chegaram aos cargos: Mário Soares não só não hostilizou Cavaco quando tomou posse em março de 1986, como lhe abriu a porta para a maioria absoluta quando dissolveu o parlamento em 1987 – recusando uma solução de cariz parlamentar, como a que hoje vigora. Soares acabou por ser apoiado, na segunda candidatura presidencial, pelo PSD de Cavaco Silva. Estes dois homens, que nunca gostaram um do outro, tiveram uma relação pragmática. A degradação coincide com os últimos tempos do consulado cavaquista. Soares chegou a discutir a dissolução da Assembleia, mas nunca a fez. 

Passemos ao Presidente Cavaco: Cavaco apostou mesmo em Sócrates para primeiro-ministro. Ao princípio, gostou dele e do seu «ímpeto reformista» que depois elogiou. Preferia-o a Santana, que era líder do PSD. As coisas depois acabaram mal, mas poucos se recordam do tempo em que a relação viveu momentos de euforia.

O caso Marcelo/Costa é diferente: têm uma relação antiga, o que não acontecia nos casos anteriores, e simpatizam um com o outro. Costa não se importou nada que Marcelo fosse eleito Presidente – preferia-o a Maria  de Belém, por exemplo. Se os amigos de Costa pensaram que Marcelo era o braço presidencial da geringonça, cometeram um erro incrível.

Todo o apoio institucional que Marcelo deu ao Governo – como fizeram de resto os seus antecessores – tinha como objetivo ter a legitimidade plena para o criticar quando necessário fosse. E convenhamos que, com o Governo assarapantado depois dos fogos de 1 de outubro, era necessário. Marcelo usará o seu poder até ao limite. Ele, constitucionalista, sabe qual é o limite. A direita mais ou menos passista não andava a perceber nada. A esquerda que julgava ter milagrosamente obtido «uma maioria, um Governo e um Presidente» ainda menos.