Costa trava revolta contra Marcelo

António ‘pragmático’ Costa não quer nenhum conflito institucional com o Presidente. O Governo ‘chocado’ foi convidado a refazer-se depressa. Foi dada ordem ao partido para acalmar as emoções anti-Marcelo. Costa não quer, por agora, uma reprise de filmes clássicos da política nacional.

Costa trava revolta contra Marcelo

Costa não quer que a legislatura se transforme num cinema de reprise. Não é  hora de rever filmes clássicos como «Eanes e Soares em ruptura iminente», «Soares e Cavaco de costas voltadas» ou «Sócrates e Cavaco em rota de colisão». Independentemente da fúria socialista perante aquilo que considerou uma espécie de «deslealdade» do Presidente da República – Marcelo já tinha sido informado por Costa de que Constança Urbano de Sousa sairia do Governo, e que se iria agora finalmente empenhar a sério no combate aos fogos florestais -, o primeiro-ministro sabe que comprar uma guerra com o Presidente da República seria suicida nesta altura do campeonato. Marcelo é a personalidade política mais amada pelo povo por estes dias e o poder de Costa assenta numa ‘geringonça’ que tem segurado o Governo contra ventos e marés, apesar das críticas e demarcações pontuais, mas que não fez os votos dos casamentos católicos: a coisa não tem necessariamente que durar «até que a morte os separe».

Depois da manchete do Público que dava conta de que o Governo tinha ficado «chocado» com o Presidente, Costa pôs em funcionamento o controlo de danos. O presidente do PS, Carlos César, deu o sinal de que a estratégia oficial era tentar fazer desaparecer as críticas do espaço público, evitando o choque em cadeia que corria o risco de trazer muito mais danos do que benefícios ao Governo. «O que sei é que as relações entre o Governo e o Presidente da República são boas e muito relevantes na estabilidade política que o país vive. E assim devem continuar», disse César, nos Açores, onde estava a acompanhar a visita presidencial, em declarações à agência Lusa. 

Mas o choque em cadeia não foi totalmente evitado. Até porque Marcelo, plenamente consciente de que neste momento o seu poder é elevado, não quis deixar passar o caso em claro. E, quando foi interrogado pelos jornalistas, o Presidente da República teve uma resposta letal para o Governo: «Há duas maneiras de encarar a realidade: uma maneira é o ‘diz que disse’ especulativo de saber quem ficou mais chocado, se A com o discurso de B, se foi B com o discurso de A; e depois há uma segunda maneira, que é a de compreender que chocado ficou o país com a tragédia vivida, com os milhares de pessoas atingidas. E quem olha para a realidade na base do ‘diz que disse’ especulativo não percebeu nada do que aconteceu em Portugal», disse o Presidente, relembrando ao Governo um dos trechos mais duros do seu discurso da semana passada – até à intervenção do primeiro-ministro na segunda-feira, inclusivé, todos os sinais apontaram para o Governo, de facto, não estar a perceber nada do que se passou em Portugal.

Ontem, avançou o número 2 do Governo para travar qualquer sentimento de choque com as declarações de Marcelo que subsistisse. «Não há nenhum desconforto por parte do Governo [com o Presidente]. Nós estamos todos focados no que é realmente importante. E isso é reconstruir o território que ardeu e o tecido empresarial nesse território, acudir e preparar as pessoas que sofreram com os incêndios, reformar profundamente o nosso sistema de proteção civil e o ordenamento do território do nosso país», dise Augusto Santos Silva.

Horas antes, em declarações à Lusa, o número 2 do Governo tinha sido ainda mais enfático: «O único desconforto que o Governo sente é o desconforto que o país inteiro sentiu, com o facto de ter sido atingido este ano por condições climatéricas absolutamente excepcionais e de o seu sistema de Protecção Civil não ter estado à altura na resposta a essas condições e o resultado ter sido tragédias, vidas humanas e muitos bens perdidos».

E aqui Augusto Santos Silva mostrou que o Governo aprendeu a lição do Presidente, demonstrado que o Governo finalmente percebeu o que se passou no país. Aliás, desde o conselho de ministros extraordinário da semana passada, o Governo conseguiu recuperar do longo torpor com que encarou os incêndios de 15 de outubro.

O núcleo duro do Governo, com Costa à cabeça, achava que exprimir mais do que a frieza que foi manifestada era uma forma de «populismo» no qual não desejavam embarcar, segundo apurou o SOL. A recusa do alegado «populismo» teve como consequência situações tão infelizes como o ex-secretário de Estado Jorge Gomes afirmar que as populações teriam que se auto-defender, a ex-ministra Constança a afirmar que, por sua vontade, demitia-se já para «poder gozar as férias que não teve» ou o primeiro-ministro a comparecer perante o país, recusando, sob qualquer forma, pedir desculpa aos portugueses – o que levou o Presidente a fazê-lo no dia seguinte. Costa acabaria por pedir desculpa, mas de uma forma que não foi bem um pedido de desculpas, durante o debate da moção de censura (ver texto acima). 

PR  quer estabilidade para já

Os dias horribilis do Governo que levaram à mais violenta declarações de um Presidente contra um Executivo – feita de uma forma direta à jugular – não podem agora redundar num conflito institucional. Essa é a posição do primeiro-ministro mas também a do Presidente da República. Marcelo não quer perturbação institucional em excesso e na sua cabeça mediu todas as possíveis consequências do seu ato: afirmou que o seu mandato estava comprometido com a resolução dos problemas que redundaram em mais de 100 mortos e admitiu que usaria todos os poderes constitucionais – incluindo, evidentemente, a dissolução do Parlamento. 

Mas Marcelo sabe que a demissão do Governo «fragilizado» – a expressão é de um dos deputados mais importante do universo socialista, João Galamba -, neste momento, seria impossível. E enquanto o PSD não estabilizar também, dificilmente Marcelo tomaria qualquer decisão radical.

De qualquer forma, o Governo consciencializou-se finalmente de que o dossiê incêndios é de importância vital. António Costa fica pessoalmente responsável por ele e vai acompanhar tudo passo a passo. «Nada pode agora falhar daqui para a frente» é o novo mantra do Governo. 

Apesar de todas as críticas que vieram do PCP e do Bloco de Esquerda, o Governo está grato aos seus parceiros – que inviabilizaram a moção de censura. Tem a plena consciência de que o ataque político seria muito mais grave se no poder estivesse a direita. 

A próxima época de incêndios vai ser acompanhada de forma radicalmente diferente.