Anne Frank. Itália usa diário para expurgar o racismo

Uma infame montagem da menina judia com a camisola da Roma fez um país curvar-se de vergonha. Adeptos da Lazio já têm visitas marcadas a Auschwitz

Falar de racismo no futebol italiano é falar de algo habitual e até corriqueiro. Todas as semanas, na maioria dos estádios, quer da Série A, quer dos escalões inferiores, há ecos de manifestações racistas nas bancadas, seja de indivíduos isolados, seja de grupos organizados. Mas poucos chegam ao patamar dos Irriducibili. Falamos da claque da Lazio, conhecida pelo seu fanatismo xenófobo e racista, e que na semana passada atingiu um dos pontos mais degradantes da sua história: no jogo com o Cagliari, inundou a curva sul do Estádio Olímpico de Roma com autocolantes com o rosto de Anne Frank envergando a camisola da AS Roma, a rival histórica da Lazio – e conotada historicamente com a esquerda -, acompanhado da legenda «Anne Frank apoia a Roma».

A montagem já tinha indignado o país há quatro anos. Desta vez, porém, Itália explodiu mesmo. A comunidade hebraica de Roma fez queixa, os jornais desportivos e generalistas arrasaram adeptos e clube e até o Presidente da República, Sergio Mattarella, reagiu, considerando-o «um ato desumano». Rendendo-se às evidências, a Federação italiana adotou uma medida insólita, mas bastante adequada: nas próximas duas jornadas, vão ser lidos extratos do diário de Anne Frank nos estádios italianos, além da existência de um minuto de silêncio e reflexão antes do início de cada jogo.

A própria direção da Lazio manifestou o seu repúdio para com o sucedido, pediu desculpa e enviou uma comitiva – com o presidente Claudio Lotito e vários jogadores – à sinagoga de Roma. Uma coroa de flores foi depositada no local, como homenagem às vítimas do Holocausto, e a imagem da menina judia esteve nas camisolas do clube no aquecimento antes do jogo de quarta-feira com o Bolonha. Além disso, Lotito anunciou ainda que a partir de agora, todos os anos a Lazio organizará uma viagem para 200 adeptos ao antigo campo de concentração de Auschwitz, numa tentativa de os sensibilizar para o peso histórico das atrocidades que ali foram cometidas.

Tudo começou com Mussolini

As ligações históricas da Lazio ao fascismo remontam aos anos 20 do século passado. Benito Mussolini, o fundador da ideologia, era adepto e presença assídua nos jogos do clube. A imagem do antigo ditador, de resto, é utilizada amiúde durante os jogos pela claque fanática, mas já conheceu episódios de revivalismo… dentro do campo. Por duas vezes, Paolo Di Canio, tão genial com a bola nos pés como controverso em todas as suas ações, fez a saudação nazi durante um jogo com… a Roma, claro está – em 1989, e após marcar o primeiro golo como profissional pelos laziale. «Se estivéssemos nas mãos dos judeus, seria o fim», disse então. Em 2005, já com 36 anos, repetiu o gesto num jogo contra o Livorno, clube com adeptos de tendência maioritariamente socialista. «Faço-a porque é uma saudação de camerata para camerati»: exatamente a terminologia utilizada por Mussolini, que Di Canio descreve na sua autobiografia como «um indivíduo ético, com princípios e que foi mal-interpretado pelas pessoas». Falta dizer apenas que, na juventude, Di Canio era membro… dos Irriducibili, que ainda hoje o veneram, e tem a palavra ‘Dux’ (equivalente ao ‘Duce’ de Mussolini) tatuada no braço.

Para a claque, a palavra ‘judeu’ é um insulto e uma ofensa grave aos adversários. Em 1998/99, num Roma-Lazio, viu-se os Irriducibili ultrapassarem todos os limites. Na sua bancada, a Curva Nord, surgiu uma tarja com a frase «Auschwitz a vossa pátria, os fornos as vossas casas», e noutras ocasiões continuam a ler-se frases como «Equipa de Negros, Multidão de Judeus». Em 1999 e em 2000, adeptos da Lazio puseram uma bomba num memorial à resistência da II Guerra Mundial e vandalizaram cemitérios judaicos. No ano seguinte, boicotaram a Peace Cup, uma competição de pré-época que então foi organizada pela Lazio e que consideraram «pró-semita» pelo facto de o clube israelita Maccabi Haifa participar.

Os primeiros dois jogadores de raça negra a alinhar no clube também não escaparam. Aron Winter, antigo internacional holandês, chegou ao clube em 1992 e era frequentemente hostilizado pelos próprios adeptos: insultos de «preto judeu» eram banda sonora habitual. Em 2001, algumas paredes da cidade de Roma e do centro desportivo da Lazio foram vandalizadas com a inscrição «Liverani, preto sujo»: referiam-se a Fabio Liverani, filho de pai italiano e mãe natural da Somália, que viria mais tarde a tornar-se no primeiro jogador de raça negra a representar a seleção de Itália e no primeiro jogador de raça negra a capitanear a Lazio.

Apesar das suas origens ligadas ao fascismo, a claque da Lazio tornou-se mais xenófoba a partir da década de 1980, quando a Série A começou a acolher a chegada de jogadores africanos e brasileiros de forma mais recorrente. Hoje, numa sociedade cada vez mais global e com o clube já há vários anos a acolher jogadores de todas as origens étnicas ou culturais – Nani, por exemplo, faz parte do atual plantel -, o grupo parece estar a perder força: na visita à sinagoga, o presidente Lotito frisou isso mesmo, garantindo que «ninguém pode usar a Lazio» e que a maioria dos adeptos do clube se posiciona «contra o antissemitismo». De resto, o próprio treinador, Simone Inzaghi, defendeu a mesma tese, considerando que a infame montagem de Anne Frank com a camisola da Roma pertenceu apenas a um «grupo de pessoas más»: «A Lazio e os seus adeptos já demonstraram por diversas vezes no passado que são contra o racismo. O clube fez mais uma vez uma demonstração disso mesmo. É uma situação que tem de ser condenada com firmeza».

Esta situação em si, curiosamente, aconteceu porque a curva norte do Olímpico de Roma estava fechada pela Federação italiana, devido a cânticos racistas dos Irriducibili num encontro com o Sassuolo, a 1 de outubro, para com os jogadores Adjapong e Duncan. A direção da Lazio decidiu então, durante esse período, vender a um euro os bilhetes destinados à curva sul, que é onde ficam colocadas normalmente as claques afetas à Roma.

‘Anne Frank? Não conheço’

Não se pense, todavia, que os ultras da Roma são mais brandos ou exclusivamente de esquerda. Em 2006, outra vez num jogo contra o Livorno, a seguinte faixa foi exibida: «Lazio e Livorno: mesma origem, mesmo forno». Outras tarjas do mesmo cariz, com alusões a queimar pretos e judeus, têm sido já apreendidas pela polícia, bem como imagens de Mussolini, bandeiras com a suástica e a cruz celta, utilizada pelos neonazistas europeus em referência às suas raízes. E em 2012, aquando da visita do Tottenham (equipa com raízes na comunidade judaica de Londres) a Roma para um jogo da Liga Europa, um grupo de dez adeptos ingleses foi espancado e agredido com armas brancas num bar por 50 italianos – presumiu-se imediatamente que se tratavam de ultras da Lazio, o adversário do Tottenham nessa partida, mas após investigações policiais percebeu-se que o ataque foi cometido por ultras da Lazio e da Roma em conjunto.

Por tudo isto, é imperativo aplaudir a medida decretada pela Federação italiana. A história da luta de Anne Frank, menina alemã de origem judaica, contra a perseguição nazi, a que havia de sucumbir aos 15 anos, num campo de concentração em Bergen-Belsen, em 1945, é sobejamente conhecida – o diário foi publicado pelo seu pai, que sobreviveu a Auschwitz, foi traduzido em 55 idiomas e vendeu mais de 20 milhões de cópias -, mas não por todos, aparentemente. Como o treinador do Torino, Sinisa Mihajlovic. «Anne Frank? Não sei quem é. Não leio jornais, não posso falar sobre o assunto. Peço desculpa mas declaro-me ignorante nessa matéria», referiu um homem que, curiosamente, é uma referência… da Lazio, que representou entre 1998 e 2004. e que é um acérrimo defensor de Slobodan Milosevic, o antigo presidente da Jugoslávia que foi formalmente acusado de crimes de guerra e contra a humanidade (entre os quais genocídio) pela intervenção militar das tropas jugoslavas na Bósnia, Croácia e Kosovo.

Fica, assim, claro que a mensagem perpetrada pela menina que apaixonou gerações e gerações tem mesmo de voltar a ser difundida de forma reforçada. Para que seja possível ir ao futebol e deixar de ouvir um comum adepto, muitas vezes com um filho ao colo, a reproduzir sons de macaco quando um jogador de raça negra da equipa adversária leva a bola.