Thierry Frémaux. O senhor Festival de Cannes

Amigo pessoal de Nicole Kidman, Leonardo DiCaprio ou Martin Scorsese, Thierry Frémaux tem provavelmente o telemóvel mais recheado de contactos de estrelas de cinema de todo o mundo. Desde 2007 desempenha o cargo de delegado geral do mais prestigiado festival da 7.ª arte, o de Cannes, lugar a que se junta o de presidente do…

Frémaux esteve em Lisboa para apresentar Lumière! – A Aventura Começa, que garante não ser um filme da sua autoria, mas de Auguste e Louis Lumière, os inventores do cinema e do cinematógrafo – «por isso posso dizer que é genial», declara sem falsas modéstias. E é mesmo. Conheça-se ou não alguns dos 108 excertos dos cerca de 1500 filmes que o Instituto Lumière trabalha para preservar, após esta ‘colagem’ de pequenas curtas preciosas que nunca ultrapassam os 55 segundos ficamos com a sensação que os irmãos Lumiére não se limitaram a inventar o cinematógrafo: foram os primeiros cineastas autores de uma nova forma de arte.

Já tinha estado em Portugal?

Sim, já cá tinha estado no festival do Paulo Branco. Mas queria voltar e a digressão Lumière! tem-me permitido isso: visitar países onde queria ir, como Portugal. Mesmo para Cannes, isso ajuda-me a saber como se passam as coisas em cada país. Porque em Paris ou em Cannes estamos sempre com os mesmos e só saindo é que nos vamos apercebendo do estado do cinema nos diferentes países.

Este Lumière! é um pequeno tesouro! Para mim, mesmo como cinéfilo, é uma verdadeira descoberta, pois como se refere no filme, o universo do cinema dos irmãos Lumière vai muito para além dos dois ou três filmes que toda a gente conhece. Como foi que passou de um trabalho imenso de recuperação para este olhar sobre a obra de Auguste e Louis Lumière?

Tudo começou pelo restauro. Existem 1500 filmes dos Lumière e que antes não estavam catalogados. Desses já foram restaurados 150, portanto apenas 10%. Já estava habituado a mostrar os filmes e a comentá-los ao vivo e entretanto fizemos um DVD de museu e pensámos na possibilidade de os exibir em sala. Mas isto apenas para ter alguns espectadores e mostrar a marca Lumière, como uma espécie de presente à memória dos Lumière. Claro que este não é um filme de Thierry Frémaux, mas apenas foi composto e comentado por mim. Os filmes são Lumière, o que me permite dizer que são geniais. Mas não é o meu filme, é o filme deles. E está a correr muito bem. Em França tivemos 820 mil espetadores e já foi vendido para 38 países. Percebemos que as pessoas querem participar nesta história. São filmes universais.

Há muitas coisas nestes filmes selecionados que me surpreendem e deslumbram. Para si, qual foi a grande descoberta, se é que teve alguma?

Os Lumière não foram só técnicos, mas também os últimos dos inventores e os primeiros dos cineastas. E que cineastas! Mesmo que não tivessem inventado o cinema, os filmes que eles fizeram são extraordinários. E numa linhagem que leva muito longe. Até Jean Renoir, Maurice Pialat, Robert Bresson, etc. O que me agradou, porque sou cinéfilo, foi o talento deles de cineastas, de realizadores.

E o cinematógrafo, mas que enorme invenção! Para si, uma das maiores invenções?

Repare: a música, a pintura, a literatura nunca saberemos onde foram inventadas. O cinema sabemos. Para nós, cinéfilos, é uma grande invenção, mas também uma invenção que correspondia ao espírito do século. Como diz, os filmes dos Lumière são o encantamento, algo incrivelmente inocente, e nós temos necessidade dessa emoção, dessa sinceridade. Essas imagens são imagens em que podemos ter confiança, não são traficadas. Mas os Lumière inventaram o cinema três vezes: inventam a técnica, a arte e a sala do cinema. Hoje em dia, a Netflix e as séries de televisão tornam este último conceito mais difuso e incerto. Mas creio que a nossa ligação às salas de cinema está intacta. 

E os Lumière não inventaram também a linguagem do cinema?

Claro! Aqui queria fazer apenas uma lição de cinema, uma pedagogia, se quiser. E uma pedagogia do espetador. É que com estes filmes aprendemos coisas sobre o cinema Lumière e aprendemos coisas sobre nós próprios. Quer dizer, com os Lumière reaprendemos a olhar. A paciência do plano, o quadro, a duração do plano…

A mise em scène…

E a mise em scène, claro. O cinema, ainda hoje, tem sempre um realizador atrás da câmara, há uma assinatura. E se há uma assinatura é porque há uma intenção. 

Sim, há essa assinatura, mas os seus comentários acrescentam também outras leituras, como o lançamento de um barco que compara a James Cameron, em Titanic, ou a posição ideal da câmara, à Raoul Wash…

Sim, sim, fiz isso porque fazer o futuro histórico, falando de Walsh, mas também de Griffith, etc., permite-nos dizer que o gesto de Lumière é o mesmo daqueles que os seguiram. Os seja, os Lumière colocaram questões de cineastas. 

Neste pequeno grupo de pequenas obras-primas, qual foi, ou quais foram aquelas que mais o emocionaram? Sabemos já que a última o cativou, como comenta no próprio filme. 

A pequena rapariga, sim. Acho que é uma imagem belíssima. Mas A saída da Fábrica Lumiére em Lyon também. Ou seja, o primeiro e o último. A saída da fábrica é um filme extraordinário, porque é o primeiro e porque as portas se abrem.

As portas abrem-se e a luz inunda-nos…

Sim. E também, algo que aliás digo no filme, as primeiras personagens são o povo, os trabalhadores. É verdadeiramente um filme dessa época. 

No filme associa-lhe um comentário de John Ford quando diz que publicar a lenda acaba por ser mais forte do que a realidade.

Há lendas magníficas. Ainda que falsas, são formidáveis.

É interessante porque quando pensamos no cinema Lumière pensamos sobretudo no documental…

Sim, diz-se que Lumière é o documentário e Meliès a ficção. Mas não é verdade. Lumière é também a ficção. Lumière é Rosselini, Meliès é Fellini; Lumière é Renoir, é Bresson, é Kiarostami, é Kechiche. É Maurice Pialat. Meliès é Stanley Donen, é Hollywood, é Jacques Demy. Um toma o registo real, o outro reinventa o real. De um lado o cinema realista, do outro o cinema do maravilhoso. Não é uma contradição, é uma complementaridade.

Também dirige o Festival Lumière. É o seu pequeno filhote? Como vê essa diferença em relação a Cannes?

É isso. Lyon é o dignitário do nascimento do cinema e não tinha um festival. À medida que o tempo passava dizia-se que teríamos de ter um festival. Nessa altura referi que se deveria fazer o oposto do que se fazia em Cannes. Cannes é o ultra contemporâneo, em Lyon será o património. É normal porque é a cidade-berço do cinema. Cannes são as vedetas que desfilam na passadeira vermelha, ao passo que em Lyon não há passadeira vermelha e as vedetas que vêm não é para falar dos seus filmes, mas do cinema dos outros. Em Cannes há competição, em Lyon não. Cannes são os profissionais, em Lyon o grande público. Portanto é um jogo de opostos. Há muito do meu trabalho de Cannes a fazer este festival.

O melhor de dois mundos, portanto.

Em todo o caso tenho a consciência de que é um privilégio enorme. Por isso é que trabalho muito para estar à altura e honrar esse desafio.

Este foi, na verdade, um ano incrível para si. Desde os 70 anos do festival de Cannes, o lançamento do livro diário Seléction Officielle, bem como este projeto, o filme Lumière!, sem esquecer a preparação do festival Lumière. Como conseguiu concretizar tudo isto?

Sabe, para mim é quase o mesmo trabalho. O meu destino como cinéfilo foi encontrar em Lyon o dever de me interessar pelo Instituto Lumière. É, como dizem os americanos, um labour of love, é um ato de amor, algo sagrado, um dever mesmo. E o dever não é só interessar-me por isso, mas também tornar esses filmes acessíveis a todos. E esse processo não está terminado, há ainda horas e horas de filmes para tratar. Por isso quando o Gilles Jacob [presidente do Festival] me contactou a convidar-me para Cannes, eu respondi-lhe que não podia. Mas ele insistiu: ‘Fazes as duas coisas’.

Não teve dúvidas em recusar Cannes? Deixar Lyon estava fora de questão?

Não queria deixar Lyon de modo nenhum. Estava fora de questão, porque estava demasiado implicado com o Instituto Lumière. O Gilles percebeu isso e agradou-lhe o facto de eu não ser parisiense e ter gosto pelo património.

Teve dificuldade em arranjar temas para preencher todos esses 365 dias do diário Sélection Officielle? Percebeu que corria também um risco?

Tive apenas uma crítica negativa, de alguém que disse que era um livro demasiado gentil. Mas o que respondo é que não iria falar de gente que não me interessa. Entre Cannes e Lyon muitas coisas se passam, há muita gente e há muito cinema. É claro que queria contar isso. Tinha receio de ser algo impúdico ou egocêntrico, mas acho que consegui passar a mensagem dessa comunidade de pessoas. É claro que se fosse hoje provavelmente relataria o nosso encontro. Só para dizer que há muitas pessoas no mundo que se batem pelo cinema.

Sendo Cannes um festival global, será que um festival mais pequeno como o Lumière, em Lyon, lhe dá um outro tipo de recompensa?

Cannes é como treinar a Seleção Nacional e o Lumière é como treinar um clube, um pequeno clube de bairro.

É a paixão.

Sim. Conservar uma ligação normal às obras, à História, ao amor do cinema, ao público, aos críticos é muito importante. Em Cannes existe uma certa loucura, como diz, é demasiado grande, por isso é preciso regressar à vida normal.

Quando pensamos em festivais de cinema, Cannes surge-nos naturalmente como o maior festival de cinema do mundo. Como o descreveria Thierry Frémaux? Porque acha que é assim?

Poderia dar explicações, mas não me apetece refletir muito. No fundo, levanto-me de manhã e sei que Cannes é o maior festival do mundo, trabalho para que continue a sê-lo. Mas não preciso de estar a dizer isso a mim próprio. Acabámos de festejar os 70 anos, abrimos uma nova década, portanto retomamos o caminho. Estar aqui a conversar consigo é como o Bruce Springsteen fazer acordes de guitarra com um amigo músico. Aqui falamos de cinema. Fazer o festival Lumière! é algo muito natural para mim. Já Cannes, não somos nós, não é a França, pertence a todos quantos o fazem. É fundamental continuar e avançar, perceber o futuro, mas sem colocar demasiadas perguntas.

Vou a Cannes desde 1999, o mesmo ano em que começou como delegado-geral, se não me engano.
Sim, foi o ano em que cheguei.

Quando pensamos quase numa vintena de anos quais são os momentos que recorda com mais ternura?

A minha primeira subida na passadeira vermelha, que foi em 2001, com o Moulin Rouge, foi muito importante. Foi um filme de autor, hollywoodiano, uma comédia musical fantástica. Por outro lado, a criação do Cannes Classics foi também muito importante. Além disso, o facto de o Gilles me ter dito, quando cheguei, que iria aprender o meu métier. E aprendi em três anos. Foi um período que se passou bem, porque quando cheguei dizia-se ‘não se pode suceder a Gilles Jacob’. No entanto acho que Cannes continuou a seguir o seu rumo e a crescer.

Reparei que ainda há pouco estava a usar o seu telefone. A minha pergunta é simples: será esse o telemóvel mais rico em contactos do mundo?

Ah, sim, este mais pequeno. Se um dia o perdesse e alguém o encontrasse diria que eu era um mitómano. ‘Ele tem o número do DiCaprio, do Scorsese, da Kidman, do Belmondo’…

Fala assim de forma informal com todas estas pessoas notáveis, como também lemos no livro?

Sim, com aqueles que são meus amigos. Também não sou amigo de toda a gente. Há uma certa química entre certas pessoas e outras não. Por exemplo, sou grande amigo da Nicole Kidman.

Imagino que trabalhe já na edição de 2018 de Cannes. Vai avançando?

Sim, claro. Vamos fazendo listas. A lista é bela, promissora. Mas a lista de Cannes não é só aquela das pessoas que conhecemos, mas também aquela das que não conhecemos. É fazer descobertas, como Toni Erdmann, como O Filho de Saúl, é tudo isso. Vamos ver. Mas sei que enquanto falamos há pessoas que estão a trabalhar e a fazer filmes para apresentarem em Cannes daqui a oito meses.

Para si, qual é a maior qualidade para ser delegado geral do Festival de Cannes?

Há dez anos que sou delegado geral. Há dois métiers: a organização de uma manifestação cultural e isso tem muito a ver com o que faço em Lyon; e há, de facto, a seleção. Para fazer a seleção é necessário ser curioso, exigente e generoso. É isso. A exigência e a generosidade.

Como apresentaria essa edição do festival de Lyon que conta com uma retrospetiva de Wong Kar-Wai?

Como sempre, tentamos visitar a História no presente. Cada vez mais o cinema contemporâneo e o cinema clássico são misturados. Por exemplo, temos uma ‘carta branca’ do Guillermo Del Toro, há também uma ‘carta branca’ chinesa de Wong Kar-Wai. Haverá ainda master classes. Ou seja, quando os Rolling Stones estão em cena também cantam o Satisfaction e não apenas o último álbum. Neste caso, é um festival de cinema em que há de tudo. Mas é também um festival de admiração. O subtítulo do festival é good films, good food, good friends. No fundo, é essa a receita de um bom festival de cinema.

Um bom amigo do festival será seguramente Bertrand Tavernier…

Sim, já me enviou o texto de elogio ao Wong Kar-Wai e é magnífico. 

De resto, será que podemos até fazer uma ligação entre a sua História do Cinema Francês e o seu Lumière!?

Sim, é uma coincidência. Há quatro anos incentivei-o a fazer esse estudo sobre o cinema francês; não queria perder a voz dele, a sua cultura, o seu entusiasmo. Temos uma cumplicidade desde sempre; é uma espécie de irmão ou pai do cinema. Cito-o também no filme Lumière! duas ou três vezes porque este cinema diz-lhe muito.

Não gostaria de terminar sem lhe fazer uma pergunta sobre o cinema português – a sua participação em Cannes, mas em geral. Como encara o nosso cinema?

Acho Portugal um dos países mais cinematográficos. A França é um país cinematográfico, os Estados Unidos são cinematográficos, Portugal é cinematográfico. Será que isso vem de vocês, dos filmes? Ou de algo igualmente fascinante? É evidente que existe uma escola portuguesa muito forte. Quando digo escola é num sentido lato. E há um cinema português importante, que se renova e que se deverá renovar ainda mais.

Esteve muito perto do Manoel de Oliveira quando ele recebeu a sua Palma de Ouro. 
Como vê o seu cinema?

O Manoel tem um cinema fundador. 

Ainda moderno.

É preciso ver os filmes, não os vi todos. Mas é por isso que digo que é um cinema fundador. Teve muitos alunos, para o melhor e para o pior. Fez imensos filmes, uns que são muito conseguidos e outros que não o serão. Isso é normal na carreira de um cineasta. Acho que o cinema português promete ainda muito e está a renovar-se. Gosto muito do [João César] Monteiro, do [João] Canijo, entre muitos outros.

Só para terminar, e porque toca na nota desportiva, qual é para si o espaço que dá ao desporto? Andar de bicicleta continua a ser uma oportunidade para refletir?

Sim, penso que o desporto tem um certo valor de arte. Acho mesmo que o cinema e o desporto moderno são semelhantes. 

No filme Lumière! vemos as primeiras bicicletas modernas no final do século XIX…

Claro! Os primeiros Jogos Olímpicos [da era moderna] foram em 1896. E o cinema foi inventado em 1895. Tudo isso permitiu reinventar o mundo, o cinema permitiu reinventar o futuro. Estas duas disciplinas têm muitas coisas comparáveis, coisas sublimes e outras que não são.

Olímpico é também o seu clube, o Olympique Lyonais. 

Sabe, quando falo da sala de cinema comparo sempre com o futebol. Em casa, tenho todas os canais, posso ver todos os jogos. Mas gosto muito de ir ao estádio. Claro que também posso ver todos os DVDs e tudo isso. No entanto, gosto muito mais de ir à sala de cinema. Portanto, a invenção dos Lumière tem ainda um grande futuro.