A Peregrinação de João Botelho

Depois de “Os Maias”. João Botelho fez-se ao mar numa caravela para a aventura de adaptar a obra que mais se fez delas: “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto. Em parte exercício de repensar o colonialismo, noutra a continuação desse ofício de lutar “contra a perda da memória”

“Quando o Armstrong chegou à Lua disse uma frase que toda a gente conhece – ‘um pequeno passo para o homem, um grande passo para a humanidade’ – mas disse também outra que não foi muito reproduzida, sobre como aquilo só se comparava ao feito dos argonautas portugueses dos séculos XV e XVI”, recorda João Botelho em conversa dentro da caravela quinhentista que foi descobrir a Vila do Conde para, depois de “Os Maias”, se atirar a um trabalho ainda maior: “A Peregrinação”, de Fernão Mendes Pi nto. “São mais 300 páginas”, brinca. Mas não só isso. “É o filme mais coletivo que já fiz. Tive de roubar muita gente, utilizar muitos talentos, quer o cenógrafo João Mendes Ribeiro que é um craque da cenografia dos teatros”, quer os compositores Hugo Silva e Daniel Bernardes, que adaptaram as canções de “Por Este Rio Acima”, olhar de Fausto na década de 1980 sobre essa obra maior por vezes esquecida, para contar o século XVI em 2017, num filme que avança entre a voz de Fernão Mendes Pinto, que ora é ele próprio, ora António de Faria, os episódios descritos a acontecerem e momentos de musical pelos marinheiros, a cappella.

“A música é uma coisa perigosa no cinema, envelhece.” Botelho diz isto a pensar no seu “Conversa Acabada”, de 1981, justamente, para dizer que a música pode passar, mas que aquelas conversas entre Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro ficam. “O ‘Por Este Rio Acima’ é uma coisa maravilhosa”, sorri. “Só que o Fausto fez aquilo para a peça da Barraca, com que até ficou chateado porque tratavam mal o Fernão Mendes Pinto – chamava-se, aliás, ‘Fernão, Mentes?’. Era o pós-25 de Abril, havia essa coisa de que o colonialismo tinha sido uma coisa de direita, e eles transformaram aquilo bem.” E as canções? “As canções são notáveis. Ele buscar tudo ao Fernão Mendes Pinto, os textos, e musicou-os de uma forma perfeita, só que eram coisas muito popularuchas na altura, com as chulas, os viras, os corridinhos, os fados, então pedi a estes dois compositores para me fazerem harmonias. A cappella, porque acho que tem que se ver a origem [da música]. E isto não é um coro brechtiano que critica, é uma coisa que faz avançar a narrativa, porque ele conta. Conta à mulher, conta aos filhos, conta na taberna, conta ao rei, conta em voz fora de campo, conta em episódios, então as canções também têm que contar.” Antes da batalha, com “A Guerra é a Guerra”, no medo de uma tempestade, quando estão cativos – e Fernão Mendes Pinto foi-o, contava, 13 vezes, além de “16 ou 17 vendido”. 
E foram as pessoas e a filmagem de cenários na Ásia a que se juntaram as dos atores em estúdio e numa nau e nesta caravela, por estes dias atracada em Alcântara, onde a equipa do filme recebeu a imprensa. “Esta aqui navega. É uma reprodução mais ou menos fiel das da época, apesar de ter motor, porque dá a volta ao mundo. Escondemos tudo o que era moderno para o filme.” Depois foi pôr estes atores que fazem os coros nestes dois barcos. Em dois grupos, porque a meio da história há um naufrágio em que morrem todos – ou quase. Não Fernão Mendes Pinto, nem António Faria, para os quais João Botelho voltou a escolher Cláudio da Silva (“Os Maias”, “Filme do Desassossego”). “Foi o Aquilino Ribeiro que me ensinou isso. Ele tem essa tese de a maldade ser ele próprio, mas posto de fora.”

E vemos então Fernão Mendes Pinto e António Faria, o autor e o seu alter-ego, num só – como também Jani Zhao interpreta ao mesmo tempo a mulher por quem o primeiro se apaixona na China, Meng, e uma outra sequestrada e violada pelo segundo num outro episódio da adaptação da obra que João Botelho apresenta com três partes – “Eu (pobre de mim, desventuras e sucessos de Fernão Mendes Pinto”; “Ele (o mal, António Faria, o corsário)”; e “Nós (os Portugueses, numa mão o crucifixo, na outra a espada)” – entre a adaptação de vários episódios da “Peregrinação” e a narração do que terá sido a vida do autor. Porque antes de tudo, explica o realizador que se tem dedicado a adaptar as grandes obras da literatura portuguesa, é a escrita. “Acho muito importante o trabalho de escrita, a luta pela escrita. Queria fazer isto também como pequena biografia e homenagem à obra que ficou, porque ele morre na miséria. O Camões também, a última palabra dos Lusíadas é “inveja”, como o Oliveira se impôs de fora para dentro, ninguém gostava dele.”

E a “Peregrinação” e não “Os Lusíadas” porquê? Pelo olhar crítico sobre a expansão colonial servir melhor do que o da epopeia este século? “A visão do Fernão Mendes Pinto sobre a colonização e as aventuras e as viagens é mais perto da verdade. Mesmo com aquela fantasia toda, é mais perto da verdade. É dizer que há mal e que há bem. Que se pilha e que se constrói, que se civiliza mas que ao mesmo tempo se rouba. Para os outros não, só se civiliza.” Mas não será político apenas isto, é também pessoal para o realizador que lembra que tem em Alberto Caeiro o seu heterónimo preferido de Pessoa. “Uma árvore é uma árvore, uma pedra é uma pedra. ‘Os Lusíadas’ são uma fúria metafórica, a ‘Peregrinação’ é o humano e eu gosto mais do humano.” 

Agora que se começa a rever a forma como se olha para a História, para o passado imperial e colonial, bom será olhar para este olhar que vem de lá, do século XVI. Versão que sempre existiu, “só que foi escondida. E houve outros, mais modestos, que não sendo tão grandes escritores fizeram isso, que tiveram uma reflexão crítica. Só que tivemos 400 anos de Inquisição, tivemos 48 anos de fascismo.” A “Peregrinação” demorou, aliás, 30 anos a ser publicada, já postumamente, em 1614, para se tornar depois no primeiro best-seller da literatura portuguesa. “Agora, acho que é uma altura de se falar no colonialismo mas com as virtudes e com os defeitos. Manter uma distância em relação à direção salazarista ou inquisitória anterior de esconder o mal, mas ao mesmo tempo revelar a grandeza. E reconhecer que há um escrito notável. Mais do que a aventura da globalização, o modo de escrever do Fernão Mendes Pinto, temos obras notáveis que não podemos deitar fora.”

E é esse exercício o ofício que reclama João Botelho. “Para a carreira estou a borrifar-me, a carreira são os autocarros. Estas coisas, uma pessoa tem que ficar com elas, mostrar que elas estão cá. Este é um trabalho contra a perda da memória.”