Salvem-nos da idiotocracia

A lição é óbvia: quando a democracia direta e internet juntam forças, quase sempre o resultado é a tirania da parvoíce.

Em 2016 só tivemos olhos para o Brexit. Mas foi outro referendo, também no Reino Unido, que mais polémica suscitou nas redes sociais (where else?). Tudo porque o Natural Environment Research Council (NERC) decidiu dar ao público britânico a possibilidade de escolher, numa votação online, o nome do seu novíssimo explorador polar. Fechada a consulta ao público, o navio de 200 milhões de libras – ‘estado da arte’ na pesquisa científica marítima – tinha acabado de ser ridiculamente batizado como Boaty McBoatface (qualquer coisa como Barquinho McCara de barco). ‘Boaty’ tinha recebido 125 mil votos. Entre sete mil propostas, David Attenborough, nome do famoso naturalista e apresentador da BBC, tinha recebido a preferência de apenas 11 mil internautas. Com muito enfado, o ministro da Ciência Jo Johnson lá disse que o «público apresentou nomes criativos e inspiradores» e que a decisão «foi difícil». Não foi nada. O navio do NERC chama-se RRS Sir David Attenborough e zarpará rumo ao ártico em 2019. Mas o ‘McCara de barco’ sobrevive: a fava calhou a um submersível amarelo.

A lição é óbvia: quando a democracia direta e internet juntam forças, quase sempre o resultado é a tirania da parvoíce. No ambiente mediático contemporâneo, de promoção de ignorância pós-factual e de discurso extremado, uma e outra têm-se reforçado mutuamente. E os rombos nas ordens liberais estabelecidas estão à vista. 

Talvez surpreenda que os representantes do povo continuem tão prolíficos na promoção de instrumentos de democracia direta, como referendos. Isso explica-se porque as consultas referendárias são instrumentos táticos usados de acordo com as conveniências do governo de turno. Nesses referendos os governos procuram cumprir pelo menos um de três objetivos: o reforço da legitimidade da sua agenda política; a abertura de válvulas para a pressão populista assumindo que, através da democracia direta, se revolvem as deficiências do sistema; e, na maioria dos casos, fazer exercícios de audição ao público. Ouvir, e dizer que se ouve, é um exercício de marketing na justa medida em que se dá ao público um sentimento de participação. A política é feita pelas pessoas e os grandes planos estratégicos tendem a negligenciar os efeitos não intencionais desse ‘pormenor’. Em primeiro lugar, os políticos não devem assumir que as visões mais moderadas prevalecem nos referendos. Não raras vezes são os movimentos políticos nos extremos que assumem as lideranças do processo político. Em segundo lugar, como bem mostra o exemplo britânico ou o referendo grego de 2015, o objeto central da consulta popular é tão complexo que os termos do plebiscito se reduzem a generalizações populistas. Em terceiro e último lugar, raramente o público mostra agradecimento por ter sido ouvido. Muito pelo contrário, os eleitores têm aproveitado os referendos (e as eleições de forma mais genérica), para vocalizar o descontentamento contra o ‘establishment’ e as elites dominantes. 

Como nos alertou James Madison nos ‘The Federalist Papers’, a democracia representativa assenta no pressuposto de que o povo, na sua capacidade coletiva, é excluído do governo. No tempo da apologia da democracia direta e da gratificação imediata através das redes sociais, os governos sacrificam Madison no altar da sobrevivência política. Não nos surpreendamos se os eleitores votarem em mais ‘McCaras de barco’ para cargos de exigência política.