Coerentemente incoerente

A coerência, contrariamente ao que possa presumir-se, não é uma obrigatoriedade em política – basta ouvir o primeiro-ministro. Mas a coerência, como qualquer virtude na praça pública, não convém ser vestida por quem não a consegue envergar.

Na última edição deste semanário, um conselheiro nacional do PSD escreveu uma comparação entre o projeto de Emmanuel Macron como Presidente da França e a candidatura de Pedro Santana Lopes à liderança social-democrata. Se costumo ser cético em torno de transladações ‘macronianas’ para o nosso país – Lisboa, ao lado de Paris, não existe no Conselho Europeu –, entendi o ponto pretendido pelo articulista. Contudo, talvez haja uma alegoria gaulesa a servir melhor a corrida à sucessão de Passos Coelho no PSD. É entre François Fillon e Rui Rio. E tem a ver com coerência – ou a com a ausência desta.

A coerência, contrariamente ao que possa presumir-se, não é uma obrigatoriedade em política – basta ouvir o primeiro-ministro. Mas a coerência, como qualquer virtude na praça pública, não convém ser vestida por quem não a consegue envergar.

No início deste ano, François Fillon, decidiu ser candidato à presidência francesa com a ética como estandarte. Queria ser a referência moral de um novo tempo. O seu desaparecimento nas sondagens e derrota eleitoral à primeira volta tiveram explicação: debaixo do discurso, a prática não coincidia. A partir do seu cargo, empregava meia família. Esse problema, de faltar às bandeiras que se escolhe empenhar, tem como consequência um rótulo de incoerência. E em política, onde a confiança, merecida ou não, é moeda de troca, a incoerência é um rótulo que fragiliza. Rui Rio começa a sofrer do mesmo.

Não pretende este texto desvalorizar quem apoia ou as intenções de quem encabeça a candidatura do ex-presidente da Câmara do Porto. Algumas das melhores cabeças do parlamento estão com ele, outras tantas do meio académico têm-se aproximado. Mas há evidências que não passam entre as gotas da chuva.

Depois de apresentar-se quase como um purificador da classe política nacional, o homem que já admitiu duvidar se «ainda somos uma democracia» não abdicou de reunir consecutivamente com os maiores caciques do aparelho do PSD – em particular da capital. Gente que respondeu em tribunal por agressão a um idoso, gente que não representa mais do que um saco de votos.

Durante quatro anos, os veteranos que agora o apoiam reclamaram um ‘recentramento’ do partido, acusaram Pedro Passos Coelho de «deriva à direita» (Rio chegou a dizer que foi «longe demais» com os funcionários públicos) e prometeram «o regresso à social-democracia», que é o que Rio também garante ao dizer-se de «centro-esquerda». No entanto, agora que Passos sai, Rio apresenta-se ao grupo parlamentar do PSD como alguém que «não faria diferente» do que Maria Luís Albuquerque fez enquanto ministra das Finanças. Rio, que em 2013 fora à televisão acusá-la de «faltar à verdade», entre outros mimos, vem agora elogiá-la e saudar o seu «rigor» nas contas públicas.

Perante as incoerências, para quem propunha dar «um banho de ética» ao partido, Rui Rio tem tantas hipóteses de cumprir a premissa quanto um porco de sair limpo do curral. Sobre os suínos e ao contrário destes, parafraseando um célebre, não somos todos iguais. Felizmente que não.​