Uma ‘raridade’ no hipermercado

Hoje, quando ando às compras no hipermercado e passo na secção dos livros, fico quase horrorizado com as montanhas de bestsellers, manuais de autoajuda e romances sentimentais de qualidade duvidosa que por ali se vêem. Talvez não passe de um preconceito estúpido, mas faz-me confusão pôr um livro no carrinho do supermercado como quem põe…

Não esqueço, no entanto, que eu próprio já comprei um livro nessas circunstâncias – curiosamente, um título de que nunca ouvira falar e de uma editora que desconhecia.

Que livro é esse? Chama-se Diário da Peste de Londres e terá sido escrito por Daniel Defoe, o autor de Robinson Crusoe, por volta de 1720. A cidade de Marselha sofria então uma das piores epidemias da sua história, o que impressionou toda a Europa. Defoe, conta o tradutor João Gaspar Simões no prefácio, decidiu explorar o assunto, recordando a peste que em 1665 matou 200 mil pessoas na capital inglesa. Pôs mãos à obra e reuniu «elementos para a composição de uma obra que fosse ao mesmo tempo uma advertência à população londrina e um rendoso negócio»…

O_Diário da Peste de Londres é um retrato apocalíptico de uma cidade que estamos mais habituados a associar à opulência e ao requinte. Face à adversidade, havia quem fugisse para os barcos (sem sucesso…); quem, suspeito de estar contaminado, fosse encarcerado na sua própria casa; quem se comportasse de forma irracional por causa das dores provocadas pela doença. «Havia os que fugiam para a rua, nus, muitas vezes, e se não eram detidos pelos vigilantes ou outros funcionários corriam para o rio e atiravam-se à água, onde a encontrassem».

Como um bom repórter, Defoe tenta também, de forma dramática, descrever até os gritos dos condenados: «Gostaria de poder registar aqui o próprio som dos gemidos e das exclamações que ouvi da boca dos pobres moribundos no momento mais profundo da sua angústia e da sua desgraça;_[…] ainda lhes ouço o eco nos ouvidos».

Defoe ouviria mesmo o eco dos gemidos quando escreveu estas palavras? É pouco provável, pois tinha apenas cinco anos em 1665, o tal ano fatídico da peste de Londres. É mais certo que se trate de um daqueles artifícios literários que se perdoam a um grande escritor.

Curiosamente, nas minhas visitas a livrarias e alfarrabistas nunca voltei a encontrar esta edição. O_que me leva a concluir que tomei a decisão correta ao comprá-la nesse dia. E que afinal, no meio dos bestsellers, também se podem encontrar raridades no hipermercado.