Orlando Figes. “O que o Terror fez repercutiu-se por várias gerações”

Tomaram o poder de assalto e, com esse poder nas mãos, exterminaram os adversários. Foi assim que os bolcheviques triunfaram, defende Orlando Figes. Mas o processo envolveu uma guerra civil “bastante negra” e deixou marcas profundas na sociedade russa

Doutorado em Oxford e professor na Universidade de Londres, Orlando Figes é um dos mais respeitados historiadores da Revolução Russa. Editado originalmente em 1996, “A Tragédia de Um Povo – A Revolução Russa 1891-1924” é um relato apaixonante dos acontecimentos dramáticos de 1917, dos seus antecedentes e consequências. Vencedor de vários prémios internacionais, acaba de ser editado em Portugal pela Dom Quixote.

Escreveu no seu livro que o “regime Romanov não foi derrubado, desmoronou-se sob o peso das suas contradições”.

E por causa da guerra. Em fevereiro de 1917, o regime já era muito impopular. Muitas pessoas, mesmo na própria família Romanov, na classe média, na aristocracia e, claro, nas classes populares, viam o derrube da monarquia como um ato patriótico, como uma forma de continuar a guerra sem o comportamento desleal do czar e a espionagem que era feita por Rasputin. Nessa altura, a pressão era irresistível. Digo que “se desmoronou sob o peso das suas contradições” no sentido de que três ou quatro dias de manifestações maciças, a que se juntou um motim, foram suficientes para o deitar abaixo. E caiu muito depressa. 

Bastou um empurrãozinho?

Um empurrãozinho. Se pensar nisso, a 26 de fevereiro, o quarto dia de manifestações maciças, quem estava lá era o Regimento Volynsky, eram adolescentes que entraram em pânico, e aí acontece o motim. O czar poderia ter regressado da frente, mobilizado forças suficientes para acabar com o protesto. Podia ter mobilizado cossacos, forças a sério, e aí teria havido um banho de sangue. Mas não o fez. Quem sabe? Talvez tenham sido os comandantes a tomar essa decisão. Mas o resultado foi que bastaram quatro dias de manifestações, morreram poucas pessoas antes do motim, e depois houve essa luta em que morreram 1500 pessoas, ainda foi bastante sangrento, mas isso foi já a revolução propriamente dita.

Como é que o povo russo reagiu à morte da família do czar?

Tanto quanto sabemos, com relativa indiferença. Mas não souberam dos filhos. A informação libertada para a imprensa foi apenas de que o czar tinha sido executado. Acho que por essa altura, 17 de julho de 1918, a monarquia era tão rejeitada que nem qualquer dos líderes brancos tentou restaurá-la. No contexto de julho de 1918 havia tantos outros problemas para resolver – muita violência, mortandade, guerra civil, fome, que me parece que mesmo que as pessoas soubessem que toda a família tinha sido executada, não penso que teria havido muito mais reação.

Muitas pessoas ainda falam da Revolução Russa com paixão e olham para ela de uma forma romântica. No início chegou a haver algum idealismo e utopia no projeto bolchevique?

Claro! Talvez até por causa da violência que trouxe consigo. A ideia de destruir para criar algo de novo é uma ideia romântica. Tem de se ter uma imaginação romântica para acreditar que a destruição pode trazer algo de novo. Aliás, essas são as palavras da Internacional. Penso que aqueles que tendem a romantizar são mais os intelectuais e os artistas do que as pessoas comuns. As pessoas comuns identificaram-se com o sistema soviético e acreditaram nele e nos seus objetivos, mas não são românticas. Tem razão, o romance de Outubro é muito comum.

Também por falta de conhecimento do que se passou?

Por ignorância voluntária. É nisso que querem acreditar, nos Trotskys deste mundo. Pode-se dizer-lhes e eles até reconhecem as mortes e tudo isso, mas acabam sempre por dizer: “Sim, mas Outubro!!! Foi um mundo de possibilidades…” Continua a ter esse lado romântico, mesmo que saibam de toda a violência, do sofrimento que resultou. As pessoas sempre fizeram isso. Suspendem o ceticismo, acreditam na “Grande Verdade” do socialismo ou do comunismo, suspendendo temporariamente o discernimento sobre o que está realmente a acontecer, porque “não se pode fazer uma omeleta sem partir alguns ovos”.

Essa frase de Estaline revela o lado mais pragmático – senão cínico – dos bolcheviques. Ao mesmo tempo que tinham esse idealismo, não eram um grupo de oportunistas apenas ansiosos por tomar o poder?

Em outubro de 1917, Lenine foi sem dúvida um oportunista, porque viu ali o momento em que podia e tinha de tomar o poder, porque se os bolcheviques não o fizessem, dizia, seriam os contrarrevolucionários a fazê-lo. Os bolcheviques sempre acreditaram na organização e em estarem preparados para a ação. Os que seguiram Lenine em outubro eram pessoas que estavam prontas para a ação. Eu chamo-lhes classe de comissários – muitos vinham do exército, foram oficiais que subiram na hierarquia, tinham capacidade de organização, sabiam usar uma arma e eram profundamente ideológicos. Mas o que torna os bolcheviques diferentes, penso que é essa organização e estar pronto para a ação.

E foi com essas duas armas que esta pequena fação conseguiu conquistar o poder e estendê-lo ao vastíssimo território da Rússia?

Acho que sim. Para tomar o poder não precisavam de uma grande força. Lenine repete muitas vezes que só é precisa uma pequena força para tomar o poder do Estado; depois, o que é distintivo na sua ideologia prática da revolução é que não precisam de um movimento social alargado para fazer a revolução, precisam do poder do Estado, e usam a ditadura para exterminar os inimigos durante a Guerra Civil. A própria Guerra Civil constrói o seu poder de base porque polariza a sociedade – “quem não está connosco é um inimigo do povo”. Extermina-se a oposição ou manda-se para o gulag e cria-se uma mentalidade de “eles contra nós” que é uma força mobilizadora, cria-se uma burocracia e um exército, uma classe de comissários, uma classe de burocratas e uma classe de militares, e deixa de se precisar da classe trabalhadora. Só é necessária a estrutura do Estado. Em 1921, a burocracia empregava 5 milhões de pessoas, o que é base social suficiente num país como a Rússia. Esse é o elemento distintivo da revolução leninista, que se torna o modelo para as revoluções nos países do Terceiro Mundo: não precisam da classe trabalhadora. Mas conseguem arranjar uma pequena força militar para tomar o poder e, a partir daí, aniquilar a oposição.

Não lhe parece um paradoxo que um dos países mais retrógrados da Europa tenha sido o laboratório de uma das experiências sociais mais ousadas e modernas alguma vez tentadas? Algo que nunca tinha sido experimentado antes foi imposto a uma população que tinha crenças e costumes, por vezes, quase medievais.

Talvez esse atraso tenha tornado as coisas mais fáceis. Especialmente se houver uma propaganda do Estado eficiente e muito baseada em imagens que veiculam ideias religiosas do poder para difundir as ideias do socialismo.

Não acha que saltaram várias etapas do desenvolvimento natural da sociedade?

Mas é esse salto é a própria essência da revolução. E é isso também que torna a revolução bolchevique tão especial: rompe com a ortodoxia marxista, que vê o socialismo como algo que evolui gradualmente. A revolução muda o próprio ritmo da História.

Foi por causa desse salto que a revolução redundou numa enorme tragédia?

Penso que foi essa a conclusão de Lenine nos últimos anos, que a Rússia não tinha as forças culturais, em termos de classes educadas, de classe política, de instituições, de capacidade técnica, não tinha as premissas culturais necessárias para construir o socialismo. Penso que foi isso que Lenine quis dizer nos seus últimos escritos. Ele diz que têm de aprender a governar, não a impor pelo terror. E foi esse o problema em 1922. Pega-se em jovens camponeses, passam pelo exército, dá-se-lhes uma arma, tornam-se comissários, guardas vermelhos, soldados da revolução. Como se lhes ensina a tornarem-se administradores, engenheiros, agrónomos, contabilistas?

Acha que o terror do estalinismo já estava inscrito na própria revolução?

Não, não estava inscrito. A predominância de Estaline em 1924 ainda não era de modo nenhum um dado adquirido. Havia uma liderança coletiva, com Bukharine e Trotsky, que tinham as suas divergências, mas ambos apoiavam o NEP [Novo Programa Económico, que vigorou entre 1921 e 1928, uma concessão à iniciativa privada].

Qual o episódio mais negro destes anos 1917-1924?

A Guerra Civil foi uma coisa terrível.

Os atos de canibalismo, por exemplo?

Sim, há muitos episódios por onde escolher. A Guerra Civil é muitas vezes ignorada – não há muitos historiadores da Guerra Civil -, mas é bastante negra. As heranças disso são muito profundas. Escrevo mais sobre isso em “Sussurros” [ed. Alêtheia], o meu livro sobre a vida privada no tempo de Estaline. As heranças da repressão brutal dos anos 30 ainda lá estão, não há dúvida.

Os traumas que o Grande Terror deixou na sociedade russa ainda são visíveis?

O que o Terror fez repercute-se por várias gerações. Aqueles que eram crianças durante o Terror, cujos pais foram reprimidos, ensinaram aos filhos certas formas de estar, certos comportamentos – não de forma explícita. Comportamentos como não falar de certas coisas em público, não falar em nomes, não questionar a autoridade de uma forma que para nós é normal, não pensar em certas coisas, todos esses comportamentos são legados do período soviético. E a aceitação generalizada da violência do Estado como uma coisa necessária. De acordo com uma sondagem, 70% dos russos pensam que a Tcheka [polícia secreta soviética, responsável pelas maiores atrocidades] defendeu a sociedade. Mesmo admitindo que, sob Estaline, 20 milhões de pessoas foram mortas por estes predecessores do KGB, aceitam que defendia a sociedade.