Mykki Blanco. “A homofobia tem uma relação direta com a misoginia”

A persona artística de Michael  Quattlebaum Jr. está hoje no Porto para uma conversa sobre género e políticas sexuais 

Esclarecer o leitor sobre se foi Mykki Blanco ou Michael Quattlebaum Jr. a ter connosco esta conversa será difícil. Teríamos que o ter à nossa frente – e foi por telefone esta entrevista com o artista multifacetado que a partir de Nova Iorque ajudou a dar forma ao movimento do queer hip hop e que, nesse seu alter-ego, é um dos convidados de hoje do Fórum do Futuro, que decorre no Porto até 11 de novembro. Não para dar um concerto, antes para uma conversa sobre género e políticas sexuais – “Gender & Sexual Politics: Da Performance ao Hip Hop” (às 19h). “A minha identidade era trans quando o projeto começou, mas na minha evolução pessoal fui ficando mais confortável com a minha identidade de género”, diz-nos numa conversa que, entre a persona e o seu artista, não veio sem surpresas. A começar por um número de telemóvel português. 

Olá, não sei quem fala daí… É para a entrevista com a Mykki Blanco, deram-me este número…

Hello?… This is Mykki…

Ah, olá. Tens um número português?

Sim, estou a viver em Lisboa.

Em Lisboa? 

Desde o último ano, sim.

Isso quer dizer que podíamos ter feito a entrevista em Lisboa antes de teres viajado para o Porto em vez de estarmos agora a falar ao telefone?

[Risos]

Bom, já que estamos aqui, por que te mudaste então para Lisboa? 

Por causa do meu namorado. Gostei sempre de Portugal e quando o conheci decidi mudar-me. Além disso, também não me apetecia viver na América com Donald Trump como presidente.

Isso aconteceu depois do concerto de há um ano no Musicbox?

Foi, sim.

Disseste uma vez que nunca quiseste ser rapper, que querias ser a Yoko Ono. O que querias dizer com isto? 

Comecei como performer, o rap veio só aos 25 anos, como parte de um projeto artístico. O meu background é o mundo da arte e do teatro e antes de ter começado o projeto da Mykki Blanco aquilo que fazia eram performances, arte, escrever, era esse o meu trabalho. Então ser artista era aquilo que eu queria. 

Entretanto surgiu este alter-ego, a Mykki Blanco, que inicialmente fazia parte de um projeto de vídeos mas que depois ajudou, a par de outros artistas como Zebra Katz, a dar forma a este  movimento a que chamaram queer hip hop. 

Isto começou em 2012 como um projeto de arte que combinava a minha escrita com esta ideia de performance drag como forma de expressão da minha identidade de género. Comecei a fazer performances em Nova Iorque, que foram ficando cada vez mais conhecidas, até um dia decidir que  aquilo era um projeto musical e ter começado a lançar os vídeos.

Tinhas consciência na altura de que estavas com isto a fazer parte desse  movimento que ia ganhando fôlego?

“Queer hip hop” foi um termo cunhado pela crítica que viu isso no que estava a fazer, em simultâneo com o que faziam outros noutras partes do país. Não fui eu nem nenhum desses artistas a falar em queer hip hop, foi mais uma necessidade dos jornalistas de descreverem o nosso trabalho.

A questão da homofobia no hip hop é antiga – Kanye West, por exemplo, trouxe-a para a discussão há mais de dez anos, na MTV. Este movimento pode ter sido uma resposta a isso num tempo em que as temáticas queer e trans vão conquistando espaço entre o mainstream?

Foram miúdos queer e pessoas por todos os Estados Unidos e resto do mundo que começaram a ouvir a música e a ficar fãs, portanto não posso dizer que tenha sido alvo desse preconceito. Sempre tive os meus fãs, desde o início.

Mas a homofobia é uma questão. Depois de um incidente com a polícia em Lisboa, em 2012, em fevereiro contaste como foste abordado num voo da Delta Airlines depois de um passageiro se ter queixado que não se sentia confortável sentado ao teu lado.

Sim. Mas são episódios que não estão relacionados com a minha carreira – de outra forma nunca teria conseguido ter sucesso.

O teu trabalho como músico chega cada vez mais a públicos que não só os círculos da comunidade LGBT. Que importância tem isto para ti?

É realmente incrível ver esta nova geração de pessoas que consomem arte de uma forma tão diferente até da dos meus pares de há dez anos. É maravilhoso como por todo o mundo as pessoas vão conquistando direitos e as questões de género vão ganhando visibilidade. Acho que tudo isto está a ajudar a abrir caminho para que as coisas possam mudar.

A cada novo trabalho, vais procurando explorar novas temáticas. Em “Gay Dog Food” [2014], por exemplo, encontramos a questão feminista.

Achei sempre que a homofobia tinha uma relação direta com a misoginia e a forma como as mulheres são tratadas. O que vejo é que quando as mulheres exigem igualdade de direitos a sociedade torna-se um lugar mais acolhedor para outros tipos de pessoas. Acho que é importante que haja plataformas para se falar daquilo que é importante para nós e é isso que tenho tentado fazer com o meu trabalho.

E o que é a Mykki Blanco para ti ao fim destes anos? Como te relacionas com este alter-ego feminino que cresceu tanto desde que o fizeste emergir? 

Sinto-me feliz por ter uma plataforma que me permite fazer não apenas música como uma série de outras coisas. Fiz um filme com artistas queer na África do Sul [primeira parte de ”Out Of This World”, uma série que está a ser publicada pela revista i-D], tenho feito residências de escrita e trabalhado em várias frentes como Mykki Blanco. Estou neste festival [Fórum do Futuro, no Porto], tenho participado em palestras. É mesmo bom quando criamos algo que depois vai crescendo em várias áreas.

Mas vês a Mykki Blanco como persona artística independente de ti, Michael Quattlebaum Jr.?

A Mykki é definitivamente um aspeto da minha personalidade. Eu, myself, sou Michael Quattlebaum, o artista [risos].

Foi sempre assim?

A minha identidade era trans quando o projeto começou. Mas na minha evolução pessoal fui ficando mais confortável com a minha identidade de género. O projeto da Mykki Blanco ajudou-me muito nesse aspeto – e em relação à minha sexualidade também.

Em que sentido? 

No sentido de encontrar realmente paz e de não ter medo de sentir orgulho na minha comunidade, em quem sou e na expressão do meu género.

Em 2015 anunciaste num post no Facebook que eras seropositivo. Porquê? E o que mudou com isso?

Foi uma decisão que teve a ver com a minha vida pessoal. Queria que as pessoas soubessem, não queria continuar com esse segredo, e nesse sentido foi muito importante para a minha vida pessoal e amorosa. Queria que as pessoas já soubessem se quisessem estar comigo, queria tirar isso do caminho. E também fazer com que as pessoas seropositivas sentissem menos o estigma. Quando as pessoas veem que vivo de forma saudável, que continuo a trabalhar, a viajar, a fazer exercício, a comer de forma saudável e a trabalhar junto da comunidade, percebem que a doença já não impede ninguém de viver uma vida feliz e saudável.

Continuar com esse segredo, como dizias, estava a impedir-te de seguires em frente, de seres feliz?

Completamente. Estava a impedir-me de viver uma vida normal. 

Foi então uma forma de libertação? 

Sim, foi realmente libertador.

Mudando completamente de assunto, que história foi essa de aos 16 anos enviares um email ao Vincent Gallo a contar que estavas prestes a fugir de casa, rumo a Nova Iorque?

Ele tinha um site em que podíamos enviar-lhe emails e eu escrevi-lhe a dizer que ia fugir de casa e a querer saber como era viver em Nova Iorque. Ele disse-me para não fugir de casa [risos], que Nova Iorque não era lugar para crianças, mas eu fugi na mesma. 

E o que aconteceu depois? 

Foi assustador porque era muito novo, mas foi uma fase interessante.

Querias só estar em Nova Iorque ou estavas mesmo a fugir de algo?

Queria só ser uma estrela de cinema [risos].