Ferrari. Um homem chamado cavalo

Foi em 1947 que a Ferrari começou a produzir carros em série. 70 anos se cumpriram sobre o sonho de Enzo, o ferrador de mulas de Modena.

Roubo o título ao nome de um filme com Richard Harris no protagonista. Um inglês capturado por uma tribo de índios, os ‘Mãos Amarelas’, e tornado escravo para todo o serviço que, depois de ter matado dois dos seus algozes, passou a ser conhecido como Horse.

O que tem isto a ver com a Ferrari: pois muito bem – nada.

A não ser que houve, em Itália, muito, muito antes de o filme de Elliot Silverstein se ter estreado nos cinemas, um homem que tinha um cavalo negro como nome da sua coragem: o Conde Francesco Baracca, às da aviação italiana no tempo da I Grande Guerra.

O cavalo levantava as patas dianteiras, pintado nos aviões do ‘Battaglione Aviatori’. Baracca era um temerário. Morreu cedo, tal como sempre acontece àqueles que os deuses amam. Viveu depressa, foi um cadáver bonito.

Em junho de 1923, Enzo Ferrari conheceu, em Ravena, a Condessa Palina, mãe do tal Francesco Baracca. Enzo era um apaixonado pelas corridas de automóveis. Diz a lenda que a Condessa lhe pediu para desenhar um cavalo no seu carro, para lhe dar sorte.

O cavalo ficou. Com o fundo amarelo da cidade de Modena, terra de Enzo.

Foi em 1947 que a produção em série de carros da marca Ferrari teve início.

Já lá vão 70 anos.

70 anos sobre uma marca que mexe com o mundo dos automóveis. 

Ferrari é símbolo de velocidade, de risco, de aventura.

Ferrari é o contrário do medo.

E é Itália, também: elegante, vistosa, arrebatadora.

Ferrari é, também, uma cor: vermelho. Cor viva, berrante, que entra pelos olhos dentro com a força profunda de um pôr-do-sol.

Vermelha Ferrari por simples convenção. A Federação Internacional Automóvel, a FIA, deliberou, no período que mediou as duas Grandes Guerras, que nas provas internacionais os carros alemães fossem pintados de branco ou prata, os franceses de azul, os britânicos de verde. Para os italianos, o encarnado. Ou o vermelho. Dificilmente outro tom lhes ficaria tão bem.

Enzo Ferrari também podia ser ‘Um Homem Chamado Cavalo’.

Foi ele que atirou o ‘Cavallino Rompante’ num galope sem igual.

Sonho de criança: um volante.

Trabalhou como ferrador de mulas quando tinha 14 anos.

O pai chamava-se Alfredo. O irmão mais velho tinha o mesmo nome. Morreram ambos, em 1916, na guerra. Vítimas de uma epidemia de gripe.

Às vezes a História é ironicamente cruel.

A carga da cavalaria

Soa a Cavalleria Rusticana: «Il cavallo scalpita…».

Enzo Ferrari começou a conduzir aos dez anos. Aos treze participou na sua primeira prova.

Ainda não havia cavalos no intervalo das mulas a ferrar.

Nasceu em Modena, no dia 18 de fevereiro de 1898. Era, e seria ainda por vários anos, o tempo da monarquia. O tempo da casa dos Sabóia.

Enzo Anselmo Ferrari Del Piero não imaginaria que, um dia, viria a ser subservientemente tratado por ‘Il Commendatore’. 

Os olhos escondidos por detrás das lentes escuras dos óculos. Sinal de luto permanente. Que nunca ninguém lhe visse as lágrimas derramadas pelo filho Dino, morto aos 24 anos por causa de uma distrofia muscular.

A mãe de Dino, mulher de Enzo, chamava-se Laura Dominica Garrello. No ano de 1961 liderou uma revolta entre os trabalhadores da fábrica. Queria ter um posto de comando. Ter tido conhecimento de que Enzo fizera um filho fora do casamento, deixara-a amarga. A revolta foi abafada. Os engenheiros e operários que a apoiaram seriam dispensados.

O cavalo da Ferrari galopava como uma carga de brigada ligeira. Dezasseis títulos de Fórmula 1 no total de marcas, 15 de pilotos. 

Na década de 50, Enzo Ferrari estreitou a amizade com Battista Farina. Sim, esse mesmo: o homem que fundou a Pininfarina. E passou a desenhar todos os Ferrari, menos dois: o Dino 308 de 1973 e a Ferrari de 2013. Mas o famoso 375 MM Pinin Farina Berlineta teve a sua assinatura: uma prenda de Roberto Rossellini, o produtor de cinema, para a sua mulher Ingrid Bergman. Já Luciano Pavarotti, o grande Rodolfo de La Bohème, preferiu um modelo F40. 

Por todo o mundo se espalharam as lojas da marca do ‘cavallino’. Em mais de 30 países vendas superiores a mil e quinhentos milhões de dólares.

Os grandes pilotos de todos os tempos querem sentar-se ao volante de um Ferrari: Alberto Ascari (campeão do mundo em 1952 e 1953), Juan Manuel Fangio (1956), Mike Hawthorn (1958), Phil Hill (1961), John Surtees (1964), Niki Lauda (1975, 1977), Jody Scheckter (1979), Michael Schumacher (2000, 2001, 2002, 2003, 2004), Kimi Räikkonen (2007). E aqueles que não ganharam mas não deixaram, por isso, de ser enormes: Clay Regazzoni, Gilles Villeneuve, Carlos Reutmann, Didier Pironi, Jacky Ickx, Mario Andretti, René Arnoux, Nigel Mansell…

Resistindo até ao fim

A Ferrari tornou-se uma marca demasiado atrativa e os interessados fizeram fila para a sua aquisição. Em 1963, a Ford fez uma proposta de 18 milhões de dólares. Enzo Ferrari exigiu continuar à frente do projeto desportivo da escuderia. Os americanos não estiveram pelos ajustes. Seis anos mais tarde, ‘Il Commendatore’ submeteu-se ao poder do gigante FIAT, da família Agnelli, cedendo 50%. Diz-se nas ruas de Turim que os príncipes de Sabóia limpavam o pó das maçanetas dos palácios dos Agnelli. Hoje, a FIAT detém 90% da marca Ferrari.

Enzo Anselmo Ferrari Del Piero. Podia ter sido Um Homem Chamado Cavalo. Por detrás das lentes negras dos óculos meio sinistros, não era possível ver-lhe o brilho no olhar. Um brilho de ambições desmesuradas.

Morreu com 90 anos, em Agosto de 1988. Tinha um cavalo relinchando no coração. Ao ritmo imparável de uma máquina.