Milton Hatoum: ‘O intelectual, quando diz o que pensa, paga-o com o isolamento’

Depois de nove anos em silêncio, Milton Hatoum publica “A noite da espera”, o primeiro romance de uma trilogia que se passa nos anos da ditadura brasileira entre Brasília, São Paulo e Paris. Em Portugal, depois da sua obra ter sido dada a conhecer pelo falecido editor da Cotovia, André Fernandes Jorge, a Companhia das Letras…

Talvez a escrita de um romance queira captar para si o rumor que o tempo deixa, as transformações reunidas num fio, o olhar que se lançam. As coisas acontecem, mas é o inesperado que acaba por dar o toque mais verosímil a qualquer ficção. Quando o acaso fica com as patas para cima na mesa, impressiona o ritmo de uma escrita pelo seu rastro, pelo dom evocativo que parece tornar os detalhes mais sensíveis. Uma personagem de “Dois Irmãos”, o segundo e mais celebrado romance do brasileiro Milton Hatoum, diz que “a esperança e a amargura são parecidas”. Talvez só pela confusão de noções distintas a vida se esclareça.

Aos 65 anos, o escritor tomou da idade uma firmeza apaziguadora, isso que faz dele um belíssimo conversador, alguém que parece molhar no chá as frases, esfarelar o bolo do tempo nas mãos. Se, como ele mesmo diz, deve ao exemplar trabalho de André Fernandes Jorge à frente das Edições Cotovia, o não ser hoje um autor desconhecido dos portugueses, no ano passado, quando o país perdia o editor, ele perdeu um amigo. Entretanto, se o vasto legado de Jorge não se perdeu inteiramente, a editora perdeu o rumo e lembra uma fantasmagoria.

A divulgação da literatura brasileira tem, nos últimos dois anos, contado com os primeiros passos entre nós do gigante editorial Penguin Random House, e “Dois Irmãos”, com selo da Companhia das Letras, é o primeiro título da meia dúzia que compõe a obra de Hatoum a merecer reedição. Tendo-se estreado em 1989 com “Relato de um Certo Oriente”, este escritor contou de imediato com o entusiasmo de algumas das vozes mais pertinentes da crítica brasileira, venceu o prémio Jabuti com aquele e os dois livros que se seguiram, e embora, desde o sucesso de “Dois Irmãos” – que vendeu mais de 200 mil exemplares no Brasil, e foi traduzido para 12 idiomas –, se dedique apenas à literatura, publica só quando acha que venceu com honra o silêncio. Depois de nove anos sem outro livro, acaba de sair "A noite da espera", o primeiro romance de uma trilogia que decorre no período mais sombrio da ditadura militar no Brasil, e o autor estava longe de imaginar, quando a escrita começou, os muitos paralelos com a actual crise política que se vive no país.

Conheceu André Jorge, o editor da Cotovia [falecido em 2016]?

Sim, era um amigo. O André Jorge interessou-se pelos meus romances antes ainda de eu publicar o “Dois Irmãos”. Depois tornámo-nos amigos. Foi uma espécie de desbravador aqui em Portugal da literatura brasileira. O André era um editor extraordinário, e uma pessoa também muito convicta dos seus princípios editoriais, intelectuais… Nunca cedeu ao mercado, publicando best-sellers. Só publicava livros que apreciava. Como amigo também foi uma pessoa muito sensível. Sinto saudades dele. Mas, enfim, como diz o Manuel Bandeira, “a vida é traição”. Ele foi-se e deixou-nos antes do tempo, é essa a traição de que fala o Bandeira. Se eu tenho alguns leitores em Portugal é graças ao André Fernandes Jorge, ao excepcional trabalho de edição que ele fez, e não só com os meus livros mas com os de vários colegas brasileiros. Não foram poucos. Agora a Companhia das Letras resolveu publicar o “Dois Irmãos” e penso que vai publicar o “Relato de um Certo Oriente”.

E o livro que acaba de publicar no Brasil, “A Noite da Espera”?

Não sei. É uma decisão deles. Oxalá.

Porque é que, há dez anos, partiu para este livro pensando numa trilogia? Do que sei, tem já a segunda e a terceira partes escritas, e estão apenas a aguardar um processo de reescrita, certo?

Sim. Comecei pelo terceiro volume, pelo fim. Seria apenas esse. Uma história cuja acção se desenrola em França, e narrada por uma mulher franco-brasileira, bilingue. Mas ela dirige-se a uma personagem que se chama Martim, de quem conhece um pouco a história, mas é a história dela que está a contar. Uma história de amor. O meu editor, Luíz Schwarcz, foi a única pessoa a quem dei o manuscrito a ler e no fim ele fez uma observação: “Eu gostaria de saber mais da história dele e do grupo dele no Brasil, entre o final dos anos 60 e os anos 70”. Levei essa frase a sério e demorei seis anos a reescrever os dois primeiros livros. Queria contar essa história, que é muito próxima da minha vida. Mas estava um pouco apreensivo porque mexe com coisas difíceis, com a brutalidade da vida brasileira daquela época. Voltei para Brasília, fiz outras viagens…

De propósito para o trabalho de escrita?

Sim. Porque eu saí de Manaus aos 15 anos. Fui morar sozinho em Brasília, com dois amigos. Queria estudar arquitectura, e em Manaus, naquela época, ainda não havia curso de arquitectura. Brasília para nós era uma grande lição de arquitectura, de urbanismo. Era uma cidade quase futurista naquele deserto, o planalto central. E eu fui estudar o colegial… não sei como se diz aqui. O ensino médio, o liceu não é? Então, participei do movimento estudantil: houve invasões policiais… Brasília foi ao mesmo tempo uma grande descoberta de uma nova arquitectura e foi também uma descoberta da vida. Por isso é que este é um romance de formação.

No documentário sobre a vida e a obra de Oscar Niemeyer, “A Vida é um Sopro”, ele conta como em vez de a comitiva que projectou Brasília ser constituída por engenheiros ou economistas, foram poetas e músicos… Essa história da fundação de Brasília tornou-se entretanto mítica? Há a ideia de um Brasil que perdeu o seu sonho…?

Era uma utopia. Esse sonho foi interrompido brutalmente pelo golpe militar, de 1964. O governo de João Goulart, Darcy Ribeiro, o próprio Niemeyer, enfim… O governo antes do golpe tinha um projecto para o país, depois, com o toque militar de recolher, esse sonho foi enterrado. Acontece que passámos mais de 20 anos sob censura e repressão, sem prática política, e com políticas muito nocivas para a educação pública. A escola pública foi muito prejudicada durante o período militar, e o que veio depois foi uma consequência dessa orientação.

Nesta sua trilogia, Martim, o personagem principal, tem consigo bastantes aspectos biográficos em comum, e é, ao mesmo tempo, uma pessoa bastante mais ingénua do ponto de vista político. Quis dirigir-se a um leitor que não estivesse já tão alinhado com as suas convicções?

Não quis aproximar a vida do protagonista da minha. Quis livrar-me da autobiografia. Ele é muito diferente de mim, o Martim. Como a minha ideia era escrever um romance de formação, na linha do Bildungsroman, da grande tradição alemã que vem de Goethe, e depois prosseguida pelos franceses… Quis contar a história de um jovem que passa da ingenuidade à fase adulta, à compreensão do mundo e de si mesmo. Um personagem que fosse de caras já um militante, alguém consciente politicamente estaria já na margem à qual eu queria chegar, o que não interessava a esse arco temporal que eu tinha projectado. Martim é um personagem meio perdido. A namorada dele, a Dinah, essa sim é uma militante convicta e uma actriz talentosa. O que ele quer é viver numa casinha no litoral de São Paulo, com ela, numa casa de caiçara, de pescador. Ela acha isso uma piada de garoto ingénuo, que quer isolar-se do mundo para viver um idílio amoroso, para sempre.

Sei que quando começou a escrever o romance estava longe de imaginar os paralelos com a crise política que viria a ser desencadeada. A sua voz está do lado daqueles que pensam que o escritor não tem de cingir-se às questões da arte ou literatura, mas e se as coisas no Brasil se agravarem? E se um dia vierem atrás de si? Já pensou nisso?

Penso pedir asilo ao governo português. (Risos. Depois fica sério.) Estou a falar a sério. De verdade. Se a geringonça me aceitar eu viria com a minha família. Tenho dois filhos relativamente novos. Um é um miúdo de 10 anos – fui pai mais velho. O outro tem 14.

Mas então é já um cenário que o tem a fazer planos caso as coisas se degradem ainda mais?

Sim, tudo pode acontecer. Acho muito difícil um golpe militar agora, acho difícil por causa da conjuntura internacional. Não interessa aos EUA ter uma ditadura no Brasil. À Europa muito menos. Haveria uma guerra civil. Seria muito pior do que foi em 64. Não sei quais seriam as consequências… Hoje o Brasil tem 206 milhões de habitantes, e a própria classe média está muito dividida. Boa parte dela não apoiaria um golpe hoje. Mas o que os jornalistas e os editores que leram este primeiro volume da trilogia perceberam é que todo este ambiente repressivo, a censura e as ameaças, que fazem parte da acção deste livro, de algum modo se projectam sobre o momento que estamos a viver. Lança uma espécie de sombra sobre o que está a acontecer hoje. Mas isto não foi intencional. Porque quando eu comecei a escrevê-lo o Brasil estava a bater às portas do paraíso. O Lula saíra deixando o seu segundo governo com 85% de aprovação. Isso é inédito. Pode ser que a ficção involuntariamente tenha piscado o olho ao futuro, que é hoje o presente. Mas isso acontece com os romances. Você escreve sem saber como será daqui a 10 anos, e o passado evocado acaba a dizer muito sobre o presente.

Aqui há uns anos traduziu um livro de Edward Said sobre o papel dos intelectuais no debate em sociedade.

Sempre apreciei os ensaios do Edward Said, sobretudo o “Orientalismo”, “Cultura e Imperialismo”… Participei da selecção de ensaios para as edições brasileiras. “Reflexões sobre o Exílio”… Usei esse para me guiar neste primeiro volume da trilogia. É um ensaio belíssimo, dele que foi um intelectual palestiniano no exílio. A posição dele nesse volume, constituído por uma série de conferências que deu em Londres, para a BBC, é basicamente a posição de um intelectual como amador. Ou seja, o não ser apenas um especialista, ou falar da sua área de conhecimento específico, mas transcender essa especialidade para falar sobre questões sociais e políticas. E sempre de um ponto de vista independente. Sem ser fiel a um partido, a uma religião ou a qualquer tipo de dogma. O intelectual quando é constrangido por algum tipo de poder ou religião, não pode dizer a verdade ao poder.

O exemplo dele é importante hoje para si?

Se eu fosse militante do PT eu não poderia falar tudo o que falei, fazer todas as críticas que fiz ao partido. E nós sabemos como o Edward Said fez críticas severas ao OLP (Organização de Libertação da Palestina). E fez críticas ao Arafat, à corrupção na OLP, à condução política das negociações com Israel, nos Acordos de Oslo… Tudo isso. Ele criticou dura e frontalmente o processo, e foi punido por isso. Ficou isolado. Mas eu acho que o intelectual, quando é honesto e diz o que pensa, paga-o com o isolamento. É essa a crise da esquerda. Quando esta não faz a sua auto-crítica, deixa-se corroer pelos seus próprios erros. Mas o eleitor percebe esses erros. Então, é muito mais fácil e honesto assumir os erros, aceitar a sua gravidade, e partir para uma redefinição da estratégia, dos modelos, parâmetros – até mesmo económicos –, romper dogmas, tentar construir uma nova política. É por isso que a esquerda está muito debilitada. A novidade é Portugal, não é?

Como assim?

Primeiro há essa união dos partidos de esquerda, e que passa talvez pela renúncia a algumas coisas, a alguns dogmas ou verdades muito cristalizadas. Senão não há avanço, senão volta-se sempre às mesmas questões. Porque é que um operário francês votaria hoje no Partido Socialista? O que é que ele fez para o bem do operário francês, do povo francês? Não é estranho que o desemprego tenha aumentado, as políticas sociais tenham sido enfraquecidas…? Porque é que o povo deve votar no Partido Socialista? É uma pergunta legítima. Só que, no Brasil, como a política do Lula de facto tirou milhões de pessoas da miséria, essas pessoas não se esqueceram disso.

Como escritor, o que é que lhe interessa, no seu diálogo com a realidade, extrair e entregar de seu?

O que mais me atrai é o romance realista. Gosto do grande romance do século XIX – o qual se reflecte na alta modernidade, nos romances do século XX… Ou seja, estabelecer uma relação, ou um diálogo tenso, entre o drama familiar e as questões da cidade ou do próprio país. É como se os laços familiares ao se esgarçarem, de algum modo, estivessem profundamente relacionados com o meio social. Nos romances sempre tento sair dessa casa destruída, em ruínas, e olhar também para a cidade arruinada, e para o país também arruinado. Quer dizer: Como se dá essa passagem da vida familiar para a vida da cidade. Vocês, na Europa, a grande ameaça que pairou sobre as vossas vidas sempre foi a guerra, não é? As cidades europeias foram destruídas pela guerra. De algum modo a história da Europa é história das suas guerras. Não há longos intervalos, não há um longo arco temporal sem uma guerra.

O período actual é o mais longo período de paz que se viveu na Europa, por causa da Aliança do Norte Atlântico e da União Europeia.

Sim, mas houve a Bósnia, o conflito nos Balcãs. É recente tudo isso. No Brasil, o que destrói as cidades é a economia, a ganância, a especulação imobiliária, a corrupção na política que destrói a memória nas nossas cidades. Nós não tivemos guerras. A última com um país vizinho foi com o Paraguai. Mas temos guerras internas, movidas pela corrupção, pela loucura toda do sistema político. Daqui a 20 anos o jovem que aqui viva vai reconhecer os espaços que estão hoje de pé: o Rossio, Alfama… Eu não reconheço a cidade da minha infância: Manaus. Ela foi praticamente destruída. Sobraram poucos edifícios da belle époque, alguns neoclássicos, mas a maioria deles foram destruídos. Por isso, interessa-me relacionar a vida particular, que é a matéria do romance, com a vida da cidade. Isso foi o que tentei – não sei se o consegui – no “Dois Irmãos” e no “Cinzas do Norte”. No primeiro romance, “Relato de um Certo Oriente”, não, porque é mais intimista. É um romance sobre a memória, a lembrança, em que a cidade está praticamente ausente. Talvez por isso seja o menos lido. Mas os outros têm essa relação da decadência da família em consonância com a decadência da cidade. E agora mudei de foco: saí do meu lugar, de Manaus, mas abordei outro lugar que pertence também à minha biografia.

É o seu compromisso com uma ideia de verdade?

No fundo, eu sigo a minha vida, porque acho que a experiência do escritor é fundamental para a experiência do narrador. A experiência não como memória do que aconteceu mas como a imaginação do que poderia ter acontecido. Daí o desafio de você inventar personagens que estejam descolados da tua vida. Mas a tua vida é fundamental para você inventar esses personagens. Essa é uma perspectiva da literatura de fundo realista, que é a que me interessa. O romance de formação, o romance da desilusão, acho que são os grandes romances do género. E mesmo da literatura contemporânea: o Céline, o Thomas Bernhard, o Günter Grass… Todos escreveram romances que guardam traços do Bildungsroman. A literatura pós-moderna vira as costas a isto. Ela acha que pode passar por cima da história particular, da história social. Ela acha que apenas apenas as colagens, os retalhos que vão compondo os eventos pode dar conta do recado. Mas não dá.

É curioso que no Brasil duas figuras da literatura contemporânea, como o Raduan Nassar e o Milton, assumem que o escritor deve marcar a literatura com um ou dois livros. Há entre vós, além disso, a partilha de uma herança cultural libanesa, e sei que tem por ele uma admiração pela forma como ele foi capaz de virar as costas à literatura.

Eu morava em São Paulo quando o Raduan publicou o “Lavoura Arcaica”. Vivi toda a década de 1970 em São Paulo, e em 1975, quando o livro foi publicado, houve uma recepção crítica muito favorável. Foi um livro importante, mas como o momento era particularmente tenso do ponto de vista político, e havia muita censura, um romance que não era directamente político passou despercebido para a maior parte dos leitores. Para os poucos que leram naquela época é claro que o livro teve um grande impacto naquela época, na primeira edição. Durante muito tempo o romance esteve longe de esgotar. (Hoje o Raduan é meu vizinho praticamente, mora a 300 metros da minha casa em São Paulo.) Quando ele morava em outro bairro, certa vez, conversando com ele, disse-me: “Deixa-me mostrar-te uma coisa.” Abriu a garagem e tinha pilhas e pilhas da primeira edição do “Lavoura Arcaica”, que a editora tinha devolvido.

Isto foi em que ano?

Foi em 1986, por aí. Foi na época em que ele leu o manuscrito do “Relato de um Certo Oriente”.

Havia no Raduan uma desilusão, uma tristeza muito grande por ter ali todos aqueles livros dele?

Sim, sim. Porque todo o escritor quer ser lido. Há os escritores que querem ganhar dinheiro e vender milhões, mas não há escritores que recusem ser lidos. Senão você não publica. Você quer leitores, e leitores de boa qualidade. Esse para mim é o meio prémio literário: ter leitores de qualidade. E ele estava entristecido com isso. Quando ele foi reeditado pela Companhia das Letras, quando saiu o filme do Luiz Fernando Carvalho (que fez a minha série também, baseada nos “Dois Irmãos”), filme que ganhou muitos prémios, aí a nova edição e o filme deram muita força ao romance. Hoje o “Lavoura Arcaica” tem seguramente mais de 100 mil leitores – o que é impressionante para o Brasil. O livro é motivo de muitas teses nas faculdades, e não só este mas o “Copo de Cólera”, e também, numa escala menor, o pequeno volume de contos, “Menina a Caminho”, que é um extraordinário livro de contos.

O que lhe disse quando leu o manuscrito do seu livro?

Ele gostou muito e deu-me muita força. Do “Dois Irmãos” também: leu o manuscrito e deu sugestões valiosas, que mudaram um pouco o epílogo do livro. Para mim ele foi um escritor importante e um leitor igualmente importante, que influíram nesse romance. Agora, o silêncio dele também o acho corajoso. Às vezes o silêncio exige mais coragem do que a publicação. É um pouco como o Herberto Helder: ou você escreve só aquilo que te toca profundamente ou… Mas isso também é uma opção. Cada um sabe de si. Não vou censurar o Paulo Coelho ou um best-seller qualquer. Agora, chamar isso de literatura já é outra coisa. Aí eu discordo. É outra coisa: um género de auto-ajuda, literatura comercial, sei lá como nomear… mas não é o que entendo por literatura. Mas nós temos também uma tradição de escritores muito exigentes que publicaram pouco. Por exemplo, o Graciliano Ramos, que acho um escritor extraordinário. Ele publicou quatro romances. E um livro de contos. Para uma carreira literária não é muito. Hoje há escritores de 50 anos que já publicaram 10 livros, 15 livros…

Isso em Portugal não é nada de especial, em Portugal é normalíssimo. É assustador até. Temos autores que andam pelos 40 e têm já 20 e 30 livros publicados.

(Risos) Que coisa louca… Mas mesmo no Brasil alguns jovens publicam sem os menores constrangimentos. (Risos) O Barthes já falava sobre isso. Lembro-me de uma entrevista dele em 1980, poucos anos antes de morrer… Quando o Maurice Nadeau lhe perguntou o que é que ele achava sobre a crise da literatura, ele disse: Não há crise nenhuma, o que há é um excesso de livros. Há um excesso de livros. Agora, há escritores que vivem disso. Sobrevivem disso. Como eu por um tempo fui professor…

Teve um atelier de arquitectura… E hoje ao que é que se dedica profissionalmente?

Dou, às vezes, palestras, sou cronista literário de dois jornais – o Globo e o Estadão -, e dou cursos, aulas… Em São Paulo há uma vida… um escritor brasileiro para viver do seu trabalho tem de estar entre o Rio e São Paulo. Mas São Paulo tem o SESC, um sistema ligado à Federação do Comércio, e este tem dezenas de unidades que trabalham com artes e com literatura. E tem também instituições culturais, e todas elas remuneram o trabalho do escritor: palestras, cursos, enfim. É uma cidade que tem um movimento cultural impressionante. É talvez uma das cidades mais dinâmicas do mundo, porque 45% da economia do Brasil está no Estado de São Paulo. E o “Dois Irmãos”, as vendas no estrangeiro, deram-me condições para viver da literatura, modestamente.

Pensava que mantinha ainda a arquitectura como profissão.

Não, nunca mais. Fiz dois ou três projectos quando me formei, e depois abandonei a profissão. Vim morar aqui na Europa…

Em Paris?

Na Espanha primeiro, em 1980. Morei nove meses em Madrid e mais cinco meses em Barcelona. Depois morei três anos e pouco em Paris.

Foi por motivos profissionais ou foi um desejo de conhecer a Europa?

Foi um desejo de sair do Brasil, de deixar a ditadura… Ganhei uma bolsa para ir para Madrid, uma bolsa de cooperação do Instituto Iberoamericano, e fui. Ia passar quatro meses e fiquei quatro anos. Queria mesmo morar em Barcelona. Foi lá que esbocei a primeira versão do romance que eu publiquei este ano. Eu pensava então em escrever a partir da minha experiência. E lembro-me que um amigo argentino, tradutor de literatura de língua portuguesa (traduziu Raduan, Graciliano Ramos, Eça de Queirós), que estava então no exílio, e ele leu o manuscrito e disse: “…não, isso não é um romance, isso é uma crónica. Você tem de esperar o tempo, dar tempo ao tempo…” Ele tinha razão: O escritor tem de dar tempo ao tempo, para se perder nele, e escrever com conhecimento de causa. Essa experiência europeia foi importante também porque eu vi tudo à distância. Nós entendemos melhor as nossas origens quando nos afastamos. Quando você sai, pensa na sua origem e pensa de uma forma mais crítica também. Sem qualquer traço chauvinista.

Hoje voltou a impor-se o discurso dos nacionalismos… O outro é olhado com muita suspeita, estranha-se mais facilmente. Parece que antes de buscar a semelhança se dá importância à dissemelhança. O que é que lhe ficou das suas origens libanesas? Como é ver esta suspeição do Ocidente face ao Oriente, ao mundo islâmico… esta diabolização do outro?

O primeiro emigrante libanês da família chegou ao Brasil em 1904, e foi de Beirute ao Acre. É muito longe. O Acre, em Rio Branco, capital do Estado, fica a alguns dias de barco de Manaus. Portanto, tem primeiro de chegar a Manaus, por Belém, e de lá ele foi pelo Rio Purus até o Acre, por causa da borracha. Houve uma emigração sírio-libanesa muito forte no Brasil a partir da segunda metade do século XIX. Sobretudo nos primeiros decénios do século passado, e por todo o território nacional. Da Amazónia ao Rio Grande do Sul, Mato Grosso, centro-oeste… Esse meu avô voltou, morou dez anos no Acre, quando este se tornou independente da Bolívia – foi roubado. E depois voltou para Beirute e meu pai cresceu ouvindo histórias da Amazónia. Aos 31 anos ele veio, não como emigrante, mas turista, para conhecer a terra onde o pai dele tinha morada. E, então, conheceu a minha mãe em Manaus e ficou no Brasil. (Risos) Eu sou filho deste acaso, deste encontro, que é um motivo literário muito antigo, um dos tópicos da literatura: o encontro, o desencontro, o acaso… A história da minha mãe, que é brasileira, a dos pais dela é diferente. Eles vieram como emigrantes, atraídos pela borracha…

São emigrantes oriundos de que país?

Do Líbano. O meu pai não, ele trabalhava já no Ministério da Justiça em Beirute, no mandato francês. O nacionalismo – para ser muito breve –, divide-se numa série de tipos, alguns deles muito nocivos para o ser humano. Mas o nacionalismo faz sentido como movimento de libertação de um povo perante situações de repressão e tirania. Faz sentido hoje na Palestina, onde resiste um dos últimos movimentos contra a ocupação, para formar uma nação… Aí faz sentido. Mas hoje, nas sociedades democráticas, ou soi disant, acho que esse tipo de nacionalismos, ou movimentos separatistas, já não fazem mais sentido. E nacionalismo pode levar a extremismos, pode levar a estados de excepção, de violência.