A pergunta fatal

Entrevistando José Sócrates, Vítor Gonçalves fez-lhe  uma pergunta ‘incómoda’ relativa à vida privada. Tratou-se de uma questão legítima ou foi um abuso?

Na polémica entrevista que Vítor Gonçalves fez a Sócrates há quase um mês, no programa Grande Entrevista, perguntou-lhe no fim: «Como é que o senhor hoje vive e como paga as suas despesas?». Revelando o ‘animal feroz’ que habita dentro dele, Sócrates exaltou-se, disse que isso era uma pergunta «à Correio da Manhã», atacou o jornalista (que ficou visivelmente embaraçado) e não respondeu.

Muita gente pôs-se ao lado de Sócrates e contra o jornalista, alegando que não é legítimo fazer perguntas sobre a vida privada das pessoas.

Tenho estima pessoal por Vítor Gonçalves, que também já me entrevistou na Grande Entrevista. Aliás, devo ser o português mais entrevistado nesse programa: duas vezes por Judite Sousa e uma por Vítor Gonçalves, sem contar com um convite seguido de ‘desconvite’. 

O episódio é insólito e merece ser contado. Depois da publicação do meu livro Eu e os Políticos, Vítor Gonçalves convidou-me para o seu programa, a entrevista chegou a ter data e hora marcadas, mas uns dias antes ligou a ‘desconvidar-me’ (o que, possivelmente, foi caso único na história do programa). 
Explicou-me que o livro tinha coisas de que ele discordava, sobretudo relativamente a episódios privados, e que lhe seria incómodo fazer perguntas sobre esses temas – pelo que preferia anular a entrevista. Estranhei, mas aceitei naturalmente a explicação. Até porque não gosto de me expor na TV e o ‘desconvite’ acabou por ser um alívio.
Fiquei, porém, estupefacto quando, algum tempo depois, no mesmo programa, sendo Helena Sacadura Cabral a entrevistada, vejo Vítor Gonçalves perguntar-lhe: «O que acha de José António Saraiva ter escrito num livro que o seu filho Miguel lhe disse que o irmão Paulo era homossexual?». Eu nem queria acreditar! Então Vítor Gonçalves desconvidara-me por não querer fazer perguntas ‘incómodas’ (do ponto de vista dele) e fazia uma pergunta destas à própria mãe das duas pessoas referidas naquele episódio? Isso já não era ‘incómodo’? O ‘incómodo’ só existia em relação a mim (que, sendo o autor do livro, era quem melhor podia explicar a inclusão dessa e doutras revelações polémicas)? 

Agora, entrevistando José Sócrates, Vítor Gonçalves também lhe fez uma pergunta ‘incómoda’. Uma pergunta relativa à vida privada. Mas neste caso já se justificaria ou seria um abuso?

Sócrates acaba de ser acusado pelo Ministério Público de fazer, desde 2006, uma vida faustosa com dinheiro proveniente de contas bancárias em nome do primo José Paulo e do amigo Carlos Santos Silva. O próprio Sócrates admite hoje que viveu nos últimos anos com dinheiro ‘emprestado’ pelo amigo. Ora, como o amigo tem as contas arrestadas, faz todo o sentido perguntar: «Com que dinheiro vive agora?».

É verdade que, em teoria, o modo como uma pessoa vive é uma questão privada. Mas, no que respeita aos políticos, tal é objeto de discussão. Lembro-me de Marcelo Rebelo de Sousa ter dito um dia que os políticos não têm direito a ter vida privada, pois todos os seus atos devem poder ser objeto de escrutínio público. 

Há também países onde os sinais exteriores de riqueza, quando não legalmente justificados pelos rendimentos que as pessoas auferem, dão origem a inquéritos e a processos judiciais. 

Em Portugal não é assim. 

Mas a vida de luxo que José Sócrates levava, com dinheiro escondido nas contas de um amigo – aparentemente para não ser detetado pelas autoridades, por ser proveniente de ‘luvas’ –, deu azo a que a sua vida pessoal e o cargo de primeiro-ministro apareçam hoje misturados pelas piores razões.

Neste caso, não foi o jornalista que misturou o público com o privado – foi o próprio Sócrates.

E a pergunta impunha-se: se as contas bancárias de que o ex-primeiro-ministro se servia estão arrestadas pela Justiça, de que dinheiro vive hoje?

A questão, portanto, não só era perfeitamente legítima como tinha de ser colocada. Se Sócrates não queria ser confrontado com ela, não deveria ter dado a entrevista.