Tarantini. “O jogador é visto como uma mercadoria, para usar e deitar fora”

“A minha causa”, da autoria do capitão rioavista, tem como principal objetivo “despertar consciências”. Aos 34 anos, o médio acredita que quando deixar de jogar não será “tão ouvido”, e até preferia que esta não fosse “a causa do Tarantini”, mas “a causa de um jogador de um dos três grandes”, pois tem “a certeza…

No Rio Ave há quase uma década, desde julho de 2008, Ricardo Monteiro, que grava na camisola o nome Tarantini e é apelidado de “Mestre”, tem a partir desta quinta-feira a sua causa à venda nas livrarias. O i foi falar com o médio rioavista para ficar a conhecer o seu mais recente projeto.

“É uma causa que lida muito com a questão de me desafiar para chegar ao topo, principalmente para os mais novos. São as formas de chegar ao topo através da minha história, que tem pistas que vão mostrar o que foi o meu caminho. Não quer dizer que toda a gente tenha de o seguir, mas foi a forma que eu encontrei para chegar ao sucesso. Acredito que construir uma vida faz parte do sonho”, começa por explicar o capitão do emblema de Vila do Conde que deixa desde logo uma pergunta no ar: “Será que vale a pena apostarmos as fichas todas numa carreira que sabemos que pode não acontecer?”.

Apesar da carreira sólida que construiu no futebol, em outubro de 2014 concluiu o Mestrado em Ciências do Desporto na Universidade da Beira Interior, porque desde cedo foi alertado para a importância dos estudos e de uma alternativa. “Tenho três irmãs e todas elas estudam. Os meus pais trabalhavam na agricultura e não queriam para os filhos aquilo que eles tiveram, portanto há uma influência familiar”, diz, num momento em que relembra que é fundamental que os mais jovens não se iludam com um estilo de vida que não dura eternamente.

“Nós, se terminarmos a carreira aos 35 anos, vamos ter mais 35 ou 40 anos de vida pela frente. O que é que vamos fazer aí? Isto é muito mais do que a intelectualidade. Não digo que toda a gente tenha de ser mestre ou que tenha de ter formação académica, o que eu digo é que toda a gente deveria estar preparada para que quando terminar a carreira continue com uma qualidade de vida igual”, sublinha.

Do digital para o físico

O livro “A minha causa” surge cerca de um ano depois do lançamento da plataforma digital, em setembro de 2016, que usa o mesmo nome [tarantini.pt/a-minha-causa/]. No site, é possível encontrar os números que levaram Tarantini a desenvolver este projeto. Apesar de em Portugal não existirem quaisquer tipo de dados relativamente às taxas de (in)sucesso dos jogadores na pós-carreira, cerca de 80% dos atletas que se retiram da NFL ficam falidos nos primeiros três anos. “Passam de uma vida com um poder económico muito elevado, comparativamente ao resto da comunidade, ou pelo menos à média, para uma carreira que não terá nada que ver com aquilo que tinham”, esclarece. Na NBA os números apontam que 60% dos jogadores, após colocarem um ponto final nas suas carreiras, ficam falidos em 5 anos, enquanto na Premier League 2 em cada 5 jogadores apresentam sérias dificuldades financeiras num máximo de cinco anos depois de se despedirem dos relvados. “Esta ideia vem daquilo que eu fui observando no futebol ao longo da minha carreira enquanto jogador profissional, e também de alguns números que comecei a pesquisar sobre tudo o que estava a acontecer. Além dos casos que conheço, como a história de um colega, o Fábio Faria, que terminou a sua carreira porque teve um problema cardíaco [o último clube que representou foi o Benfica. Retirou-se do futebol a 8 de março de 2013 com apenas 23 anos, por problemas cardíacos]. Além de Faria, Tarantini destaca o caso de Fábio Paim, de “quem também foi colega de equipa”. “Pela qualidade que todos lhe atribuíam e eu atribuí também, até pela questão de conseguir chegar ao topo, e até com o que ele já ganhava na altura, foi um caso que a mim me ‘revoltou’. Estes foram os dois casos mais perturbantes [Fábio Faria e Fábio Paim]. Esses números fizeram com que eu começasse a falar sobre isto”, relembra.

Titular indiscutível no Rio Ave, onde já soma, esta época, 13 jogos (11 para a liga, 1 na Taça da Liga, 1 na Taça de Portugal), Tarantini tem como principal objetivo “despertar consciências”. “Se as pessoas não souberem que isto é um problema não irão procurar a solução. As pessoas ainda não sabem que isto é um problema sério e não só para aqueles que já estão no topo da carreira no futebol mundial, mas principalmente para os pais dos miúdos e para os próprios que anseiam em chegar lá”, alerta. “O livro é uma conjugação disso tudo. Sensibilizar para acreditar que é possível, e eu também consegui, alcançar os sonhos, mas ao mesmo tempo serve para compreender que é preciso construir a vida à volta de uma carreira”, afirma.

Jogadores vivem numa ilusão

Num mundo à parte durante os anos em que jogam, os atletas “vivem numa bolha e na ilusão de que aquilo vai durar a vida toda”. “A grande falha é uma vida inadequada a aquilo que poderá ser o futuro e também tem muito que ver com a formação profissional, ou seja, não estarem preparados para o mercado de trabalho pós-futebol”, defende o veterano, que tem como ambição pessoal ser um dos jogadores de futebol a concluir o doutoramento enquanto ainda está no ativo.

“Os dados [acima mencionados] mostram que quem ganha mais são os que ficam pobres, na bancarrota. É uma relação de escala. Se àqueles jogadores acontece aquilo, então o que acontecerá aos que ganham ainda menos…”, argumenta.

A gestão de carreiras

Na perspetiva do ‘Mestre’, que se debruça sobre a séria questão da gestão de carreiras, “o jogador é visto como uma mercadoria que é para usar e deitar fora”. “O jogador é visto como um rendimento temporal. Eles [clubes] estão interessados apenas com o rendimento de jogo de futebol”, lamenta, aproveitando para interrogar se realmente os clubes estão preocupados com a formação dos seus atletas, como gostam de o fazer parecer. “Os clubes falam na formação do homem pelo jogo e pelo futebol, mas depois quando acabam de jogar futebol o que é que aconteceu a esses jogadores? Será que formaram realmente homens ou formaram jogadores de futebol que um dia foram vendidos, deram muitos milhões e que hoje estão ‘nas ruas da amargura’, ou que estão com dificuldades e trabalhos precários?”. Questões sem resposta numa “realidade em que se usa o jogador com o intuito puramente económico”. “A visão do homem global, que os clubes preparam para a sociedade, isso não há, não existe!”, remata.

O impacto se fosse um dos três grandes

Utiliza o tempo livre para se dedicar a esta causa que, reforça, “não é uma crítica, é uma realidade”, mas assevera que “em primeiro lugar está a profissão”, e não passa limites que a ponham em causa”. Todavia, e com a intenção de continuar a jogar por mais alguns anos, tem consciência de que agora, “por ainda ser um ídolo para muitos miudos”, é “mais ouvido do que quando parar de jogar”. Mas, Tarantini ainda tem tempo para partilhar um último desejo: “Gostaria muito que esta não fosse ‘a causa do Tarantini’, tomara eu que esta fosse a causa de um jogador de um dos três grandes”, pois tem “a certeza que ia ter um impacto muito maior, uma dimensão que não tem nada que ver com aquilo que se está a passar aqui”.