Father John Misty. A divina comédia

Em nome do pai, escolheu por batismo. O filho não se conhece, mas nos concertos reina a fantasia cor-de-rosa. Concerto sem roupa interior no palco é uma noite perdida. O espírito santo ficou na Igreja Evangélica de Rockville, onde cresceu. Hoje, Father John Misty goza a sério no Coliseu

Nas primeiras notas musicais das biografias de Father John Misty, o cadastro vincula-o aos Fleet Foxes, dos quais foi baterista. É um facto, mas isso foi há uma eternidade na era digital. Josh Tillman esteve quatro anos com a fanfarra folk de inverno na gravação e digressão do magnífico “Helplessness Blues”, de 2008. Quatro anos foram o necessário para se autoconvencer de que o lugar devido era na boca de cena. Baquetas, bombos e tarolas eram pouco para Father John Misty, trovador, sedutor, príncipe encantado do toca-e-foge, ator e intérprete de uma comédia americana às vezes mágica, outras vezes trágica. 

Em dezembro terão passado cinco anos desde que pisou pela primeira vez um palco nacional. O “ex-baterista dos Fleet Foxes” findava 2012 com boas recordações. “Fear Fun”, o primeiro gesto em nome próprio, já radiografava a humanidade na perspetiva de um americano devoto da banda sonora das pradarias e da vida social da cidade, a partir de três ângulos decisivos na sua escrita: o amor, o medo e o humor. 

Não é possível compreendê-lo, ignorando qualquer um destes três cantos. Em “I Love You, Honeybear” (2015) desconstruía a relação com Emma, de forma tão pessoal que se sentiu constrangido ao mostrar as canções pela primeira vez aos amigos. No auge do sarcasmo, Tillman escrevia “Holy Shit” sobre o dia do casamento, enquanto “I Went to the Store One Day” revisitava o compromisso desde o dia em que os dois se conheceram até ao momento pictórico da morte. “Chateau Lobby #4 (in C for Two Virgins)”, excêntrico western spaghetti sobre a lua-de-mel ,era a golpada definitiva na seriedade que as canções fazem crer. 

É em palco que a mise-en-scène ganha forma e os corações palpitam. Os concertos de Father John Misty podiam ser de uma boys band para mulheres em período fértil. Se as canções apanharam trejeitos de Neil Young, Harry Nilsson, Randy Newman e Elton John, no novo “Pure Comedy”, a ginga serpenteante é de quem perdeu horas a ver vídeos de Nick Cave no YouTube. É que, apesar de o cancioneiro se regular pelas leis americanas, Tillman é um devorador de cultura pop e não se coíbe de o verbalizar nas redes sociais. 

Há dois anos, um par de versões das versões de “1989” de Taylor Swift, gravadas por Ryan Adams, provocaram um engarrafamento nas redes sociais. Para muitos, uma piada. Para Adams, uma heresia sem perdão. “O idiota mais arrogante que há no mundo”, chamou a Father John Misty este verão. Veneno destilado no Twitter como quem rega com gasolina o pedaço e sai em ombros. “Um Elton John merdoso, se este estivesse a um canto a tripar em LSD e a olhar para as próprias mãos”, escreveu. Misty respondeu com sarcasmo em vídeo. “O Ryan Adams disse que eu era o idiota mais importante que há no mundo.” O diálogo terminou em penitência. “Estou muito cansado, mas não é desculpa para ser maldoso com outras pessoas”, reconheceu Ryan Adams. 

A verdade é que Father John Misty é uma estrela em ascensão e há, pelo menos, duas provas irrefutáveis desse reconhecimento: Beyoncé e Lady Gaga. Para ambas escreveu de forma quase displicente. Com Queen Bey, “enviaram-me apenas a batida e o gancho. Escrevi aquele primeiro verso e a parte do ‘jealous and crazy’. Depois de gravarmos aquilo, pensei: ‘Não podemos enviar-lhe isto. É ridículo.’ Não podia. A minha voz não… não me cabia a mim vender aquela canção”, comentou. “Nunca foi uma ambição minha nem nada que se pareça – é completamente absurdo só ter escrito para a Lady Gaga e a Beyoncé. O resto das pessoas fica ‘ehhh’”, descreveu sobre a experiência de compor “Sinner’s Prayer” e “Come to Mama” para Lady Gaga. 

Em todas as épocas ou movimentos há figuras capazes de saltar a cerca e ganhar uma amplitude transversal. Father John Misty está entre os heróis da nação alternativa americana e a elite pop reformada pela internet. E ainda assim, reserva-se o direito de conservar a humanidade e a provocação na ponta dos dedos – é seguir o Twitter para se perceber por que razão muitos dos seus escritos têm direito a notícia e, às vezes, manchete. 

“Pure Comedy”, o pretexto que o traz à sala magna do Coliseu dos Recreios, é um olhar sincero sobre os EUA de Trump, cheio de piadas privadas. Um irmão mais novo de “I Love You, Honeybear”, só que “menos cínico”, antecipou à revista “Uncut”. Os bilhetes para hoje à noite custam 26 euros e a primeira parte de Weyes Blood não é nada de desprezar.