Pedro Rodrigues. “Há um aumento da falsificação de documentos”

Pedro Rodrigues, de 63 anos, é candidato a bastonário pela lista B. Lamenta o facilitismo que se instalou no setor: gera insegurança

Pedro Rodrigues acredita que os notários podem ajudar a combater a morosidade na justiça se assumirem mais papéis hoje remetidos para os tribunais, como aconteceu com as partilhas litigiosas em 2013. Notário em Lisboa com 35 anos de experiência, diz sentir o pulsar do investimento estrangeiro no país – Cantona e Louboutin já passaram pelo seu cartório. E sublinha que os notários são cada vez mais chamados a ser fiscais da legalidade, até com a nova lei de branqueamento de capitais.

Qual é o seu ponto de partida para esta candidatura?

A grande preocupação que tenho neste momento é pacificar a classe. Tem estado muito dividida, com grandes fricções.

Motivadas por quê?

Vários motivos, da desformalização dos atos notariais à redução dos serviços para os notários mas também a introdução de novas competências, nomeadamente os inventários, que têm sido um tema bastante fraturante. A minha experiência profissional é grande e sinto que de facto tem havido esta fricção perante estas mudanças.

É notário há quantos anos?

Há 35 anos. Comecei no Ministério Público, estive nas conservatórias do registo comercial e predial. Estive dez anos a advogar simultaneamente, por isso conheço muito bem os problemas da justiça. Estive chefe de gabinete do secretário de Estado da Presidência e depois rumei ao Ministério da Justiça para ajudar na reforma do notariado, onde fui responsável pelas medidas legislativas do regime do notariado privado.

Doze anos depois dessa reforma, e com o Estado a assumir algumas tarefas, era este resultado que antevia?

A reforma teve em vista a privatização do notariado. De funcionário público passei a profissional liberal e foi a primeira vez que uma transformação desta natureza se fez no país. É claro que em 2008, produto de uma mudança do governo, avançou-se para a desformalização, ou seja, permitir que outros profissionais da área da justiça praticassem atos que os notários praticavam até aqui, embora não com o conceito de escritura pública mas de documento particular. 

Foi uma inflexão?

Sei que os novos tempos da evolução da economia reclamam a liberalização do mercado e portanto aquela ideia de exclusividade na função ia manter-se por muito tempo. Mas receio que em vez de se ter feito uma reforma baseada na competência baseou-se no facilitismo na criação de documentos particulares. O que acabamos por ter hoje é um aumento da falsificação de documentos no geral.

Em que áreas?

Tive essa indicação de elementos da Polícia Judiciária que estiveram no cartório. O que posso dizer é que quando se recorria no passado ao notário era com uma função preventiva: o notário era um crivo até pelo requisito de ter de ser imparcial perante as partes e levava a um menor recurso aos tribunais. Até se dizia “notário aberto, tribunal fechado”. É natural que com o alargamento da elaboração destes documentos a tantos profissionais que haja mais espaço para haver falsificações. Nós na altura éramos 300 ou 400 notários. Não somos melhores ou piores que outros profissionais jurídicos, mas éramos fiscalizados. Deixando de haver essa fiscalização por parte do Ministério da Justiça e alargando-se competências de 300 a 400 notários facilmente inspecionados, a 50 mil pessoas causa isto. Hoje advogados, solicitadores, toda a área jurídica pode hoje praticar atos notariais, os chamados Documentos Particulares Autenticados. Claro que isto numa visão de liberalismo, faz sentido, mas numa visão de controlo da legalidade é mais difícil.

Mas havendo mais pessoas a operar poderia ser mais fácil fazer as coisas de forma legal.

Pois, depende da natureza humana. O certo é que os notários, que são os agentes que historicamente se identificam com a segurança jurídica, não foram chamados nem ouvidos nestes diplomas da desformalização. O poder político não deu valor à ordem dos notários e é essa a minha vocação nesta candidatura.

Recuperar o papel da Ordem?

Elevar a Ordem para que ela possa ser ouvida com as suas propostas, não sindicais, mas propostas que defendam as pessoas e as empresas.

Como tenciona fazer isso?

Reclamando algumas competências para os cartórios notariais. Neste momento já temos a competência dos inventários, das chamadas partilhas judiciais, que importa clarificar.

Em que aspetos?

Por exemplo pelos valores em causa. Os inventários de valores de bens muito elevado estão caros e os inventários de valores menos elevados tornam difícil a tramitação porque não têm a mínima rentabilidade, são mais as despesas do que a receita. Propomos a reforma do processo de inventário mas também pretendemos propor uma intervenção dos cartórios em competências hoje exclusivas do conservatória do registo civil, casamento, divórcios, separação de pessoas e bem, regulação das responsabilidades parentais, sempre no âmbito da jurisdição voluntária. Se há um caminho de desjudicialização para reduzir o trabalho dos tribunais, estamos em condições de ter um papel mais ativo.

Têm sido subaproveitados?

Sem dúvida. Os notários têm determinados requisitos nas suas funções que os tornam um parceiro da justiça e não se conseguiu transmitir essa importância aos sucessivos governos.

Ouvimos muitas vezes falar da morosidade da justiça. Em que áreas é que poderiam torná-la mais ágil?

Na área dos inventários de que já falámos e que passou dos tribunais para os cartórios hoje já há uma tramitação mais rápida, embora haja que corrigir muitos aspetos. Mas por exemplo nas ações de divisão de coisa comum.  

Por exemplo?

Duas ou três pessoas são proprietárias de bens em comum, por exemplo imóveis, e não se entendem para os dividir. Como não se entendem atualmente recorrem ao tribunal para que o juiz imponha a divisão e o notário faz essa divisão quando há acordo. Penso que também estaríamos em condições de tramitar um processo litigioso nesta área, dado que uma das obrigações é seremos imparciais, equidistantes das das partes.

Porque é esse papel de parceiro não tem sido reforçado?

Em termos teóricos todos os bastonários fizeram o melhor que podiam. A questão, creio, tem a ver com a forma como a Ordem se relaciona com o poder. Como não somos um sindicato e não temos assim tantos associados para reivindicar pelo número, temos de ser um parceiro e fazer propostas que assentem na razoabilidade.

Que outros aspetos são centrais no seu programa?

A desmaterialização, é inevitável. Outro aspeto importante que importa corrigir é a falta de comunicação com os colegas. A minha imagem de marca no programa da candidatura são os think tanks do notariado, termos um ambiente em que falamos uns com os outros e as ideias surgem de forma democrática.

No dia a dia, que processos têm vindo a ganhar peso?

Sente-se o pulsar do turismo, a chegada ao país de pessoas mediáticas. Ainda recentemente tive no cartório o Éric Cantona, famoso jogador de futebol, tirou fotografias com toda a gente. O Louboutin também.

E a Madonna, também é sua cliente?

A Madonna não, pelos vistos estou mais virado para os franceses.

As vantagens que o Estado oferece a esses investidores estrangeiros são determinantes na decisão de investir?

São muito importantes. Claro que temos o sol, um clima que nos torna dos melhores países para viver, mas são muito importantes.

E quando vê os benefícios que têm os estrangeiros e depois lida com um cliente seu português, sente que é justo?

A questão é ambivalente. Por um lado dinamizam a economia, por outro elevam os preços e nós portugueses temos dificuldade em comprar. Mas tendo nós estado num período de crise em que se considerou que o investimento era importante, venha ele.

Desse período de crise, que imagens guarda?

Momentos muito trágicos, passaram por aqui muitas insolvências de sociedades e pessoas. Centenas e milhares de pessoas a entregar as suas casas aos bancos. Tive aqui no período da crise oito bancos a trabalhar comigo, a transferir milhares de prédios para fundos. 

Houve algum caso que o tenha marcado?

É sempre terrível quando vem um casal entregar a casa ao banco, muitas vezes de lágrimas nos olhos.

Ao fim destes anos na profissão, consegue perceber o que dita o sucesso de uma empresa?

Tenho dificuldade em responder porque é muito uma questão económica, mas vem sempre de muito trabalho.

Mas qual é o erro crasso?

O excessivo endividamento. A pessoa perde completamente a sua independência e todos os planos se alteram. 

São uma profissão com  futuro ou com mais ferramentas tecnológicas e simplificação administrativa serão daquelas destinadas um dia a desaparecer que vão desaparecer?

Acho que somos uma profissão com futuro. Não vale a pena dizer que vimos do século XII e que a revolução francesa pôs todas as instituições em causa exceto o notariado. E porquê? A base do notariado é a noção de segurança jurídica. Sei que isto não se vê mas é como a luz elétrica, só quando falta nos apercebemos da falta que faz. E depois os notários devem ser como os árbitros, não se deve dar por eles.

Trabalhou com o BES.

O cartório público de onde vim, o 17º cartório notarial de Lisboa, trabalhava com a administração do BES, como trabalhava com as administrações de muitas empresas do PSI20. Era o maior cartório do país.

Tendo lidado com muitas das chamadas elites portuguesas, como vê estes casos de corrupção que têm surgido? 

No nosso dia a dia o que vemos são contratos.

Mas às vezes pode aparecer-vos algo estranho.

Agora com a lei de branqueamento de capitais temos um dever acrescido. Já entrou em vigor e a partir desta segunda-feira passa a ser obrigatório nas escrituras sindicar o modo de pagamento e todas as  transferências, passamos a ser também uns fiscais da ilegalidade. Creio que desde o início tínhamos essa função, quando exigimos todos os documentos que a lei impõe, e agora é algo que sai reforçado. É preciso dizer que formalismo é diferente de burocracia: é uma garantia de cumprimento da legalidade.

Ainda assim, as pessoas não gostam muito de burocracias.

É verdade mas também de haver um justo equilíbrio e perceber-se que o facilitismo gera insegurança.