Carlos Martins. “Dois ou três dias de chuva não vão chegar para ultrapassar a seca”

Secretário de Estado do Ambiente admite que esta é a seca mais longa que o país já viveu. Solução? Ser cuidadoso no uso da água 

O país está em seca e a solução necessária teima em não chegar. O IPMA prevê chuva a partir desta semana, mas em pouca quantidade e não em todo o território. Ao i, o secretário de Estado do Ambiente diz que o governo está a acompanhar o problema diariamente junto dos municípios mais afetados e a desenhar medidas consoante as necessidades. Carlos Martins admite o racionamento durante a noite em algumas localidades e avisa que é preciso a população habituar-se a gastar menos água. Até espaçando mais os banhos, recomenda. 

O IPMA revelou na semana passada que é a primeira vez que, em finais de outubro, o país está em seca severa ou extrema. Pode dizer-se que esta é a pior seca de sempre?

Do ponto de vista do prolongamento temporal, seguramente é a circunstância mais preocupante que nós conhecemos. Vivi de perto a seca de 2005 e felizmente nessa altura atingimos uma situação que em setembro era similar à deste ano, mas depois tivemos um mês de outubro que permitiu ultrapassar os problemas criados. Este ano, outubro foi muito mais gravoso e já vamos a meio de novembro com uma situação ainda mais crítica. Portanto, diria que do ponto de vista do prolongamento no tempo, esta seca é seguramente a mais gravosa. Tanto mais que se não fosse um conjunto de infraestruturas, nomeadamente a barragem do Alqueva, um conjunto de barragens que foram construídas em Trás-os-Montes e também a barragem de Odelouca, no Algarve, a nossa situação seria muito, muito complicada.

Tem-se falado muito sobre o abastecimento humano estar em perigo. O que mais está a ser afetado?

Do ponto de vista dos usos, temos uma disciplina de usos da água de que muitas vezes até nem nos lembramos, que é a produção hidroelétrica. A produção de eletricidade está bastante penalizada, já desde praticamente o mês de maio.

O que foi feito?

A questão é que sempre que há albufeiras que têm usos de produção de energia elétrica, rega e abastecimento humano, a primeira que se interrompe é a produção de energia elétrica, só garantindo bombagem quando há necessidade de caudais ecológicos. Depois, a segunda atividade que acaba por ser penalizada é a agricultura – e eu diria que é talvez aquela que sinta com maior intensidade o problema da seca. Nós tentámos – e conseguimos até praticamente meados de setembro – garantir caudais, para culturas que estavam no final do seu ciclo, nomeadamente a vinha, o olival e alguns cereais, para que essa produção não fosse posta em causa.

E não foi?

Claro que a seca tem outras implicações na agricultura que vão para além disso. Sabemos que a castanha este ano não tem a mesma qualidade e é uma castanha mais miúda. Previa-se que, em alguns locais, até viesse a ser um ano bom para a azeitona, mas depois, mercê da seca, e onde não há rega gota a gota ou mais industrializada, essa produção foi penalizada. Tentámos salvaguardar alguns caudais para os animais, mas também é conhecido que a seca tem outros efeitos: não havendo precipitação não há pasto, se não há pasto, não há alimento para os animais, não há produção de leite, não há produção de queijo. Portanto há aqui um conjunto de atividades ligadas à agricultura e à agroindústria que começam a ter problemas até de matérias-primas para se poderem desenvolver com normalidade e responder à procura dos seus produtos.

Consegue quantificar prejuízos?

Não temos esses dados apurados aqui no Ministério do Ambiente, acredito que o Ministério da Agricultura acompanhe muito de perto essa situação. Nas reuniões que temos de caráter interministerial, esse assunto tem sido suscitado. Sabemos que, no caso dos bovinos da Serra da Estrela, a situação já tem alguma gravidade. Por um lado, porque houve um conjunto deles que morreram mercê dos incêndios, e por outro, os produtores estão a ter problemas para alimentarem os que sobreviveram.

E quanto à gestão dá água, como está a ser feita?

Ao nível do consumo humano, temos tido a preocupação de tentar salvaguardar cerca de um ano de consumo. Esse era o nosso objetivo no final de setembro, já passaram dois meses e, na maioria do território nacional, as reservas superficiais têm água para cerca de dez meses. Há um conjunto de pequenas populações que tem problemas com águas subterrâneas e muitas vezes não temos um apuramento dessas reservas tão relevante e rigoroso como temos das águas superficiais. Houve, ao longo deste verão, várias populações que viram as suas reservas subterrâneas serem exauridas, houve aberturas de novos furos nalguns municípios do Alentejo, na Beira Interior e em Trás-os-Montes e com isso ultrapassou-se problemas, na maior parte dos casos. Quando isso não foi ultrapassado dessa forma, houve o recurso a camiões cisterna.

Qual o estado da situação em Viseu?

Um problema que nós sinalizámos no dia 2 de outubro e que consideramos que tem vindo a ter um agravamento significativo é o problema dos municípios com abastecimento a partir da barragem de Fagilde, neste caso Viseu, Mangualde, Nelas e um pouco de Penalva do Castelo, com situações diferentes entre si. Penalva do Castelo, de uma forma bastante proativa, promoveu um conjunto de medidas de recurso a antigas fontes e minas, com soluções provisórias, mas está a lidar relativamente bem com o problema. Talvez seja neste momento, dos quatro municípios, aquele que mais cedo acautelou esta situação e aquele que apresenta uma situação mais tranquila.

E os restantes?

Os outros três têm problemas que nós identificámos como críticos. Se no dia 2 de outubro sinalizámos, no dia 16 houve logo reuniões de trabalho com todos os municípios envolvidos e os seus técnicos em Viseu, onde envolvemos entidades que até nem têm muito a ver com o abastecimento público, que é uma responsabilidade direta dos municípios. Estiveram presentes a Águas de Portugal, a Águas do Planalto – que têm alguma capacidade de reserva nas proximidades -, a Administração da Região Hidrográfica (ARH) do Centro, responsável pela gestão dos recursos hídricos naquela bacia. Essas reuniões depois acabaram por levar à criação de um grupo de trabalho no sentido de, no prazo de uma semana, traçar medidas imediatas que deviam ser tomadas e de identificar origens de água alternativas. Esse trabalho foi feito e, no dia 26 de outubro, foi tomada a decisão, por parte do Ministério, de apoiar os municípios com 250 mil euros, até porque alguns tinham dificuldade de fazer a contratação dos camiões. Dia 27 já houve camiões a operar, sobretudo em Viseu e Mangualde. Paralelamente, foram identificadas outras origens de água. 

De onde vem a água?

Quer o Planalto Beirão quer as Águas do Norte disponibilizaram cerca de dez mil metros cúbicos por dia. Infelizmente, os municípios não tiveram capacidade para transportar essa quantidade, mas ela ficou disponível a partir do dia 27 de outubro. Foi também feito um estudo hidrogeológico no Dão e nalgumas linhas de água envolventes, no sentido de ver se havia captações que pudessem ser recuperadas. Foi identificada no município de Viseu uma antiga captação que vai ser restabelecida, já está em teste há vários dias. Seriam boas notícias esta semana o furo de Viseu poder reforçar o abastecimento à cidade – tem um caudal estimado que representa quase 20% dos consumos. 

Reuniram-se de novo na semana passada em Mangualde. O que discutiram?

Preocupados com a circunstância de essa disponibilidade de dez mil metros cúbicos não estar a ser usada na sua totalidade, por dificuldades de contratação de camiões, decidimos procurar o apoio também do Ministério da Administração Interna, para mobilizar meios dos bombeiros que complementem os camiões cisterna privados que foram contratados. Foram anunciados mais 250 mil euros de apoio do Governo – do Ministério do Ambiente, através do Fundo Ambiental – para suportar alguma parte desses custos adicionais, neste caso para transportar água da Barragem da Aguieira para a Barragem de Fagilde. Esta água não vai diretamente para a rede pública porque é uma água bruta, ainda não tratada, mas vai para a albufeira e depois segue o caminho normal, vai à estação de tratamento de águas de Viseu e segue depois para a rede. 

E agora vem aí chuva…

Está anunciada para a próxima quinta alguma pluviosidade no Continente, esperemos que ela tenha algum significado naquela região. Ainda assim, não é isso que vai fazer parar esta intervenção porque estamos convencidos de que a pluviosidade de que precisamos para restabelecer um clima de normalidade obrigaria a uma precipitação muito intensa e muito demorada no tempo, não será certamente dois ou três dias que nos vai fazer ultrapassar a preocupação. Veremos, com o evoluir do tempo, se as medidas que começam esta semana – mais camiões a transportar água da Aguieira para Fagilde, mais camiões a transportar água do Planalto Beirão e da Barragem das Águas do Norte para os reservatórios de Mangualde, Nelas e Viseu – nos permitirão ter uma situação mais tranquila. Por outro lado, também por decisão da Comissão da Seca e por sugestão da Comissão de Gestão de Albufeiras, iniciámos um intenso programa de comunicação nos média e nos multibancos, no sentido de levar as pessoas a comportamentos mais adequados.

Se alguém em Lisboa reduzir o consumo de água, de que forma é que isso ajuda uma pessoa que está em Viseu?

Pode ajudar. Uma pessoa em Lisboa bebe água a partir da Barragem de Castelo de Bode – maioritariamente, apesar de a EPAL ter mais do que uma origem. Imaginemos nós que as pessoas que bebem em Lisboa poupam água e portanto aumentam a disponibilidade hídrica de Castelo de Bode. Isso pode, um dia, levar-nos a pensar em levar água por comboio, por exemplo. Isso está pensado a partir do Entroncamento, nas proximidades de Castelo de Bode. Temos condutas de água que ligam a ETA da EPAL ao Entroncamento, onde podíamos fazer o carregamento dos reservatórios e, para ajudar os camiões, ainda que com custos muito maiores, tentar fazer o transporte para Mangualde, onde há uma estação ferroviária. Portanto, cada um de nós, independentemente do local onde está, quando poupa água aumenta algures no território nacional a nossa disponibilidade hídrica.

Como viu o anúncio do autarca de Nelas de que iria ser ativado o estado de emergência municipal, algo desmentido pelos municípios vizinhos?

Por norma, não gosto de fazer comentários sobre as preocupações de terceiros. Considero que a preocupação é legítima, porque os municípios são os primeiros responsáveis por garantir o abastecimento de água às pessoas. Nelas é, dos quatro, o município que tem mais debilidade técnica para lidar com este problema. Isto acontece também por dificuldades financeiras, apesar do apoio do Governo aos camiões cisterna, e ainda porque tem uma atividade industrial consumidora de muita agua e que com certeza o município não quer pôr em causa. A única questão que eu relevo é talvez a falta de coordenação em termos regionais, porque tendo havido reuniões regulares e este assunto devia resultar de uma coordenação entre os municípios e o próprio governo e acabou por ser um episódio isolado. A única coisa que posso dizer é que partilho da preocupação, mas não me pareceu que tenha sido uma atitude muito concertada tendo em conta que temos mantido um diálogo muito constante com aqueles municípios.

Por que motivo só recentemente lançaram a campanha de poupança de água?

Fomos percorrendo um roteiro próximo daquele que seguimos na seca de 2005. Fomos até mais cuidadosos, porque desde maio que andamos a dar um conjunto de recomendações, alertas, entrevistas, que foram sensibilizando para a situação. Naturalmente, num primeiro momento, concentrámo-nos nos municípios do Alentejo, com maiores problemas. Em agosto, as nossas preocupações viraram-se para a Beira Interior e Trás-os-Montes, com a vinda dos emigrantes. Depois, foi Bragança, e agora todos esses problemas estão resolvidos. Entretanto, fomos surpreendidos com o problema de Fagilde, sinalizámo-lo no dia 2 de outubro como uma situação preocupante.

E a necessidade de reforçar a comunicação?

Foi sinalizada também nesse mesmo dia em que sinalizámos Fagilde. Precisávamos de uma campanha nacional – já os municípios afetados tinham feito, localmente, campanhas -, porque o problema já tinha uma escala nacional relevante. Os objetivos foram dois: um imediato, de redução, para lidar com a seca, e outro mais de médio-longo prazo, de levar as pessoas a repensar a maneira como se relacionam com o uso da água e a tornarem-se cidadãos mais responsáveis. As políticas, para terem sucesso, têm de ter cidadãos empenhados e comprometidos.

A nascente do rio Douro já secou há dois meses. Há motivos para preocupação deste lado da fronteira?

Não estamos isolados e este problema da seca está a afetar todos os países que têm um clima mediterrânico. A península Ibérica está a ser muito afetada devido ao anticiclone dos Açores não se reposicionar e não deixar que haja precipitação nesta zona do território. Os problemas que nós temos têm muita semelhança com os problemas que estão a ocorrer nas bacias internacionais. A nossa escassez de água decorre de não haver a precipitação média normal e de haver um conjunto de anos significativo em que essa tendência se verifica. Portanto, o que está a acontecer com o Douro é o que acontecerá com todos os recursos hídricos quando não há precipitação. Não temos muitos instrumentos para lidar com a seca que não seja sermos cuidadosos na maneira como usamos a água que ainda temos.

Mas há obras que podem ser feitas.

Com esta problemática adicional das alterações climáticas e dos cenários que se desenham para a Península, o que considero relevante destacar é o conjunto de medidas que temos vindo a trabalhar – e que não são às vezes percecionadas pelas pessoas. Há, por exemplo, 40 milhões de euros de obra no Alentejo, decididas em 2016 quando chegámos ao governo, por se saber que lá é preciso construir infraestruturas para lidar com os momentos de seca. A Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA) tem sido uma peça chave para minorar os problemas no Alentejo. Se não fosse a EDIA e a barragem do Alqueva, teríamos ali uma situação bem complexa. O Algarve este ano teve o maior numero de turistas de sempre, sem nenhum problema porque foi construída a barragem de Odelouca. Quando as pessoas pensam que não tem vindo a ser feito nada, não é assim. Tem havido um conjunto de investimentos e temos desenhado outros, como o alargamento dos perímetros da influência do Alqueva – no Alqueva temos água, o problema é que não conseguimos levá-la onde é precisa muitas vezes, por exemplo, por limitação das próprias condutas. Em Portugal temos 350 entidades gestoras de água, mas temos entidades gestoras que servem três milhões de habitantes e outras que servem pouco mais de três mil. A capacidade técnica, o conhecimento, o know-how dessas entidades é completamente distinto. Para minorar isso o Governo tem posto à disposição dos municípios as competências e disponibilidades que existem nas empresas do grupo Águas de Portugal, bem como parcerias para em conjunto encontrar soluções.

A falta de água pode vir a causar aumentos nas faturas da água e da eletricidade?

Este ano não, porque os preços são regulados anualmente pela entidade reguladora que é independente e não depende do governo. Portanto, cabe ao regulador apreciar os estudos económicos que suportam as tarifas, no sentido de saber se os custos acrescidos que estes processos introduzem são merecedores de levar ou não um agravamento de tarifa. O que me parece a mim é que estamos a tratar de um assunto ainda tão localizado em termos de população e de entidades que não deve haver razões suficientes para, no que diz respeito ao abastecimento público de água, haver um agravamento de tarifa pela via dos custos que foram superiores este ano. As empresas podem eventualmente ter menos resultados, mas isso não se traduz necessariamente em agravamentos.

E no caso da eletricidade?

No que diz respeito à energia elétrica não consigo ter essa avaliação, mas a ERSAR, neste caso a ERSE, que é o regulador para os serviços elétricos, ponderará se a EDP, não produzindo energia a partir da solução hídrica, terá custos superiores ou inferiores recorrendo à solução eólica, à solução solar, ao carvão ou ao gás. Portanto, essa é uma matéria sobre a qual nós não temos conhecimento detalhado, mas seria tentado a dizer que não há razões para pensar que vai haver esse agravamento, mesmo nos quatro municípios mais afetados. É cedo ainda para antecipar isso e são questões que têm reguladores próprios.

O racionamento poderá vir a estar em cima da mesa?

O racionamento já tem sido testado em alguns países que passaram por situações destas. Há dois anos, São Paulo estava com racionamento, uma cidade com 20 milhões de habitantes, e algumas medidas de racionamento não resultaram muito bem. As pessoas tendem a colocar a água na banheiras, nos baldes, nos lavatórios e muitas vezes no dia a seguir, como a água não falta, acabam por voltar a libertar-se dela, às vezes até quase sem uso nenhum, e até introduzem perdas maiores. Admito, no entanto, que em algumas situações concretas isso possa acontecer em períodos noturnos, por exemplo, porque isso até teria a vantagem de, em redes de municípios com perdas de água importantes, pelo menos no período noturno não perderiam água.

O que lhe parece mais eficaz?

Uma medida que me parece mais importante, e essa tem efeitos imediatos, é os municípios e as entidades gestoras dos serviços de água reduzirem as pressões de água. Quando se reduz a pressão, por cada minuto que temos a torneira aberta, acaba por haver um menor débito e portanto estamos a fazer uma poupança induzida por essa perda de pressão. O que é mais relevante é o autocontrolo das pessoas, ou seja, para que não sejam vítimas de racionamento, elas próprias têm de ter comportamentos de melhor consumo e uso da água, serem mais eficientes.

Como?

As pessoas tomarem banhos mais rápidos, eventualmente mais espaçados no tempo, fazerem uma utilização mais disciplinada dos sanitários, não fazerem lavagens dos dentes, das mãos ou da loiça com água a correr, fazerem regas do jardim com água já usada e durante a noite – mas, antes de o fazerem, pensarem no vizinho do lado, que no dia a seguir pode não ter água… Essas são, a meu ver, medidas que conduzem a um melhor resultado e sobretudo criam nos cidadãos a consciência de que estes não devem ser gestos isolados, mas algo da prática quotidiana. A facilidade com que acedemos a um bem tão importante muitas vezes retira-lhe valor, e nós temos de lhe recolocar o valor que tem. Só nos lembramos desse valor quando nos falta esse bem, que neste caso é a água.