José Cutileiro: ‘Os cocktails e as receções são a parte mais chata da diplomacia’

Considera que o 25 de Abril, tema central do seu mais recente livro, «foi o tirar uma carapaça enorme e desagradável». Mas também reconhece que a Revolução trouxe «muitas ilusões e muitas patetices». Aos 82 anos, José Cutileiro fala sobre o que viu e ouviu em lugares tão díspares como Oxford, o Soweto ou Cabul.

Filho de um médico opositor do Regime e irmão do escultor João Cutileiro, o nosso entrevistado licenciou-se e doutorou-se em Antropologia em Oxford. Estava como leitor na London School of Economics quando se deu o 25 de Abril e Soares o convidou para ser conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Londres. Como embaixador, passou por Estrasburgo (Conselho da Europa), Maputo e Pretória (África do Sul). Paralelamente, nunca deixou de escrever poesia, crónicas e obituários. Recentemente a Dom Quixote publicou 25 de Abril e Outras Transições, um livro de memórias e reflexões com pouco mais de 100 páginas. «Há uma tendência perniciosa para editar coisas muito grandes», comenta, a propósito da espessura diminuta do seu livro. «Havia um grego de Alexandria que dizia: ‘Um grande livro é um grande mal.’ Este, ao menos, um grande mal não pode ser».

Por alguns episódios que conta, pareceu-me que não leva o 25 de Abril muito a sério. É assim ou estarei enganado?

Levo inteiramente a sério. O mundo mudou para nós. O que se passa é que houve talvez muitas esperanças ligadas ao 25 de Abril, muitas ilusões, muitas patetices. E há aquilo a que os espanhóis chamam vigências. Muitas coisas que são portuguesas, que estavam antes, continuaram e hão de continuar. Tirando isso acho que o 25 de Abril foi uma mudança radical. Até para mim. O meu pai era da oposição, tinha tido problemas políticos, e eu estava em país inimigo, por assim dizer. E deixei de estar, porque conhecia o Mário Soares – se não conhecesse a minha história do 25 de Abril teria sido diferente. Não é não levar a sério, é levar muito a sério mas perceber que há coisas que uma mudança política importante pode fazer, mas há outras que permanecem.

De mentalidade?

De mentalidade e de costumes que estão muito arreigados. Vou dar um exemplo. Tinha a certa altura um colega no Liceu Valsassina cujo pai era dono de umas grandes lojas de roupa ao pé do largo de S. Paulo que também tinham alfaiataria própria. Um dia, já eu estava na faculdade, fiz um sobretudo. E havia provas. O oficial de alfaiataria certa vez preveniu-me que ele teria de ir ao Norte para ser testemunha num processo. Quando fui à prova seguinte, perguntei-lhe: ‘Como é que se passou lá em cima?’. E ele, a pôr-me as agulhas e aquelas marcações, responde isto: ‘O juiz queria que eu dissesse a verdade, mas eu…’. Estava a gabar-se de perjúrio! Na Alemanha, na Suécia, no Reino Unido, não passaria pela cabeça de ninguém dizer isso, porque era estar a descrever-se a si próprio como uma pessoa pouco séria, um velhaco. Em Portugal é perfeitamente legítimo. É como quem diz ‘Sou mais esperto que o juiz’.

Falou das ilusões que havia quando se deu o 25 de Abril. Também partilhou dessas ilusões, dessa esperança exagerada?

Um dos exemplos que conto no livro é de uma hospedeira da TAP que sugere que a IATA mude as regras da distribuição das refeições entre as classes. A esse ponto, não. Mas de coisas externas, que não tenham a ver com a minha vida [privada] ou com as pessoas de quem eu gosto ou gostei, o 25 de Abril foi certamente a maior alegria que tive. Foi tirar uma carapaça enorme e desagradável. Para voltar à sua pergunta, sobre as esperanças, havia a noção de que muitas pessoas que estavam fora por razões políticas iam regressar e ajudar.

Quais foram as suas primeiras impressões quando regressou?

Eu não regressei exatamente… A diferença é que passei a ser pago por Portugal. Na altura era professor na School of Economics e durante muitos anos tinha estado em Oxford com bolsas da Gulbenkian, e depois pago pelo St. Antony’s College. Mas durante as férias académicas, que são longas, passei muito tempo em Portugal.

Ao longo da vida passou muito tempo fora do país. Logo em jovem ainda viveu no Afeganistão.

O meu pai foi professor da Faculdade de Medicina de Cabul, contratado pela OMS.

Essa experiência foi uma espécie de prenúncio do que viria a ser a sua vida?

Se quiser olhar assim… Passei seis meses no Afeganistão, dois ou três meses na Suíça e depois voltei. Só saí novamente – tirando umas visitas curtas a Espanha – quando fui para Oxford, já com vinte e tal anos.

Como era o Afeganistão?

Era bonito. Uma paisagem espantosa, austera. Aqui há uns oito anos, a minha mulher foi convidada para fazer uma conferência em New Delhi. Fui com ela e de caminho sobrevoámos o Afeganistão. De cima é magnífico, com aquelas montanhas. Cabul era diferente. A Faculdade de Medicina de Cabul tinha basicamente professores franceses, era quase um feudo da França, e foi um desses franceses que veio numa station wagon grande, com um motorista afegão, buscar-nos a Peshawar, no Paquistão. E dormia-se em Jalalabad a meio do caminho – essas cidades agora conhecem-se porque rebentam bombas todos os dias, nessa altura não rebentavam.

Era seguro?

Lembro-me de irmos já de noite na estrada e aparecerem uns tipos a dizer-nos para parar. E o francês disse ao motorista: ‘Zut burru!’ – aprendi depois que quer dizer ‘para a frente depressa’. Depois explicou-nos: nunca se sabia nestes casos se era a tropa, se eram bandidos. Não havia ainda islamismo militante, eram bandidos de estrada, salteadores. E, não sabendo, na dúvida tentava-se passar.

Quem eram as pessoas com quem se dava por lá?

Conheci sobretudo estrangeiros. Havia uma missão arqueológica francesa permanente em Cabul, nessa altura dirigida por um senhor chamado Schlumberger, e trabalhava lá um arqueólogo de 24 anos com quem me dei um bocado. Havia depois os diplomatas. O embaixador inglês, o Major Thompson, era uma caricatura – há pessoas assim. Um inglês de anedota! Numa visita guiada ao museu de Cabul, que tinha coisas magníficas, o francês olhou para ele e disse: ‘Pauvres anglais! Ils vont de pire en pire…’ [Pobres ingleses. Vão de mal a pior]. O tipo que disse isto tinha passado a guerra de uma maneira não muito honrosa, porque foi condenado à morte, acusado de colaboracionismo, e depois indultado, e andava a tentar, com estes pequenos governos corruptos, arranjar dinheiro para comprar um pequeno castelo no Sul de França. O diretor da missão das Nações Unidas era um texano muito simpático. Havia uma espécie de pequena comunidade internacional.

Como foi o regresso a Portugal?

O meu pai adoeceu na primavera e voltámos a Portugal em agosto. Durante aqueles meses não tinha lido um jornal português – e só tínhamos levado os livros bons. No voo de Madrid para Lisboa em agosto de 1952 peguei no Diário de Notícias e tive a impressão que era muito mal escrito – é uma impressão que a gente de vez em quando tem em relação aos nossos jornais. Já em Portugal tive também a impressão que toda a gente se tinha vestido para um casamento. Os portugueses estavam todos engravatados. Mesmo em Madrid as pessoas andavam em mangas de camisa, os portugueses não, andavam todos arranjadinhos.

Essa impressão de o jornal ser mal escrito voltou a tê-la, de uma forma mais geral, sobre o nível cultural do país?

Não… O que acontecia é que continuava a ser muito parecido com o que sempre tinha sido. Lembro-me de estar numa festa em casa de uma família de gente muito próxima de mim e não percebia quase nada, porque as pessoas só falavam quase umas das outras, e só raramente em coisas mais abstratas. Isso fez-me um bocadinho impressão.

Ainda estudou Arquitetura e Medicina, não foi?

Estudei primeiro Arquitetura e ainda Medicina, e depois fui para Oxford fazer um diploma em Antropologia e doutorei-me por lá.

Por que escolheu Antropologia?

Eu não sou filósofo, não tenho uma grande capacidade de abstração. Acontece-me ser em coisas que oiço entre pessoas ou que vejo que percebo um bocado melhor o mundo. E os antropólogos é disso que vivem. Não sei se é por ser assim que acabei por gostar de antropologia ou se foi por gostar de antropologia que acabei a ser assim. Quando veio o 25 de Abril eu já era há três anos lecturer em Social Anthropology na London School of Economics. Houve um concurso para um lectureship e escolheram-me a mim – os ingleses têm um certo fascínio pelos estrangeiros. Por junto passei em Inglaterra 14 anos.

Como se tornou diplomata? Fez o concurso para a carreira?

Não, não. Fui nomeado. Os embaixadores ditos políticos são nomeados por decisão do Governo. Depois do 25 de Abril o Mário Soares ‘apanhou’ o Ministério dos Estrangeiros – aliás ele quis ser ministro dos Estrangeiros e não ministro de Estado, como o Cunhal e o Sá Carneiro, e um dia explicou-me porquê. ‘Ao fim de quatro meses o Sá Carneiro tinha aparecido na televisão quatro vezes e eu 80’. E o Mário Soares teve com ele o Victor Cunha Rego, que era um homem muito inteligente e muito lúcido. Aliás foi sobretudo ele que impediu que houvesse saneamentos no MNE. Por duas razões: a maioria das pessoas não haveria provavelmente nenhum motivo para as sanear; e a segunda é que, se saneassem, o PC rapidamente metia lá a máquina. Já agora conto-lhe uma história. Quando estive em Oxford convivi um pouco com o M. S. Lourenço. Ele era um practical joker, gostava de pregar partidas. Depois deixei praticamente de o ver, mas quando nos víamos era sempre um grande gosto. O M. S. Lourenço não tinha podido ensinar Filosofia em Lisboa por razões políticas, mas depois do 25 de Abril foi uma comissão maoista a casa dele, em Sintra, propor-lhe a cátedra. Aquilo estava bem encaminhado e a certa altura um dos maoistas diz-lhe: ‘Sr. Professor, com certeza já leu o trabalho do camarada Estaline sobre a lógica’. E ele: ‘Não…’. ‘Mas vai ler, com certeza’. ‘Nem pouco mais ou menos!’. De maneira que acabou o convite logo ali [risos].

Qual foi o seu primeiro posto?

Comecei por ser conselheiro cultural da embaixada em Londres e três anos depois o José Medeiros Ferreira convidou-me para ir para Estrasburgo, para o Conselho da Europa.

Quais são as funções de um conselheiro cultural?

No fundo é animar as relações em questões culturais entre os dois países.

Promover iniciativas, exposições…?

Por exemplo. Tentei organizar uma exposição de pintura portuguesa em Londres. Foi uma das primeiras coisas importantes que fiz. A revolução dá uma espécie de um vale-tudo que pode dar coisas boas e coisas más.

‘Vale-tudo’ no sentido de tudo ser possível?

Isso mesmo, não é no sentido de se perderem balizas morais. Há a noção de que em princípio tudo se pode fazer. Além dessas iniciativas há questões de intercâmbios, há gente que quer fazer estudos, coisas literárias… Mas foi um tempo engraçado. Às vezes havia convites para ir explicar a grupos de estudantes de universidades da província, ou a outras instituições, o que era o Portugal moderno e a revolução. Eu gostava de ir fazer isso e o primeiro embaixador que lá tive, o Albano Nogueira, também achava engraçado que eu fosse.

Gostava que me falasse do que viu na antiga Jugoslávia, onde esteve no início da década de 90. Assistiu a alguns horrores da guerra?

Em 1991 a Eslovénia fica independente e há dez mortos. Depois na Croácia há muita guerra, sobretudo no Sul da Croácia, que tinha uma grande população sérvia. E a luta entre eles foi muito violenta. Quando cheguei fui tratar da Bósnia, porque [Lord] Carrington [enviado da CEE para presidir às conversações para a paz na ex-Jugoslávia] me pediu para tratar da Bósnia. E aí as coisas estragaram-se muito. Mas não assisti diretamente a horrores.

Mas ouviu?

Ouvi relatos das pessoas. Que não eram muito diferentes do que se sabia das guerras balcânicas de 1911-1912. Não houve grande mudança sobre a maneira de fazer mal aos outros.

Segundo li, os conflitos já vinham de trás, quando os muçulmanos abriram as portas aos turcos e os cristãos foram massacrados…

A história daquela parte do mundo está cheia de maldades brutais. Todos fizeram. Os muçulmanos são menos e foram às vezes mais maltratados que os outros. Outras vezes foram eles que maltrataram. Cada um sabe a história à sua maneira, e há sempre um ano qualquer em que a pessoa que está a falar consigo tem razão. ‘Em 1634 penduraram-nos pelos pés e pegaram-nos pelo fogo’. E é verdade. Mas noutro ano qualquer foi o contrário. A Comunidade Europeia tinha a ideia de que as guerras tinham acabado e que íamos fazer a paz. Um antigo ministro do Luxemburgo, quando a questão dos Balcãs rebentou, disse: ‘Chegou a hora da Europa’. Bom, não tinha chegado! Como dizia um americano: ‘The clock stopped at a quarter to Europe’. [risos] A Jugoslávia, tal como correu, só foi possível porque a União Soviética estava de rastos e não tinha capacidade de dizer: ‘Aqui não, isto é meu’. O Gorbachov e o Yeltsin estavam virados para dentro. Queriam é que os deixassem em paz.

Voltou lá?

Continuei a ir durante um tempo, trabalhei para a Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas, que manda uns raporteurs.

Observadores?

Não são observadores, são pessoas que fazem relatórios sobre o estado dos direitos do homem, ou da proteção aos direitos do homem. Na altura em que andava a tratar disso, um dia estava em casa de uns amigos em Lisboa e comecei a dizer: ‘Os direitos do homem têm um problema fundamental’, isto talvez num tom um bocadinho…

Enfatuado?

Um bocadinho a armar ao pingarelho. E estava lá um senhor que disse: ‘Pois têm. O homem!’. [risos] E é isso! De uma maneira geral eles mentiam todos. Os sérvios mentiam menos que os outros mas batiam mais que os outros – o mais fraco tem de ter mais manha, ao mais forte basta-lhe ter força. De uma maneira geral, os sérvios lidaram comigo mais decentemente do que os muçulmanos. O Tudjman [antigo Presidente da Croácia], como um professor que falasse com um aluno que ele achava esperto mas não tinha ainda feito o seu trabalho, disse-me uma coisa extraordinária: ‘You have to understand that ethnic cleansing is much better than genocide’ [‘a limpeza étnica é muito melhor que o genocídio’]. Como quem diz que só um especialista é capaz de perceber se aquilo é um Vermeer, se é uma cópia!

Tocou no aspeto da mentira. Os diplomatas nem sempre podem dizer a verdade, dizem o que podem dizer – ou o que devem dizer.

Ninguém diz sempre a verdade, não são só os diplomatas…

Conseguir perceber quando os outros estão a mentir também faz parte da arte do diplomata?

O que tem de se perceber é que os diplomatas estão a fazer um serviço útil. A alternativa à diplomacia é a guerra.

Certas pessoas têm a ideia de que os diplomatas andam só em receções e cocktails

Isso é uma ideia profundamente falsa. Fui diplomata e devo dizer que os cocktails e as receções são muitas vezes a parte mais chata dessas coisas. Mas são trabalho. O Vasco Futscher [Pereira, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros], quando havia receções no Palácio da Ajuda ou nas Necessidades, proibia os diplomatas portugueses de falarem uns com os outros. Tinham de falar com os estrangeiros, é para isso que eles são pagos. O Talleyrand [político francês dos sécs. XVIII-XIX] disse: ‘Sourtout pas trop de zèle’ e há muita gente preguiçosa que acha que isto quer dizer que os diplomatas devem trabalhar pouco. Não. O que isto quer dizer é que é preciso não ser extremista, é preciso não ser exigente de mais, é preciso deixar um espaço ao outro para mexer.

Qual foi o posto onde mais gostou de estar?

Na África do Sul, sem qualquer dúvida. Por causa da altura em que estive. Menos de um ano depois de eu lá chegar, o Mandela saiu da cadeia. Tive uma sorte enorme.

Hoje Mandela é quase um mito, mas conheceu-o em carne e osso.

Sim, sim, estive com ele pelo menos quatro ou cinco vezes. Era um homem absolutamente extraordinário. Eu tinha estabelecido uma relação muito amigável com um homem que foi depois ministro da Justiça dele, um advogado de origem indiana chamado Dullah Omar, e foi ele que me meteu uma cunha. Depois do embaixador inglês, que tinha tido importância na própria libertação, fui o primeiro embaixador a ser recebido pelo Mandela, quinze dias depois de ele ser solto. E havia gente dentro do inner circle dele que era muito pouco pró-portuguesa… Da primeira vez que me recebeu, estou em casa dele e portanto sou visita dele. E a casa dele não é só aquele casebre – é a África do Sul inteira. E o tipo diz-me que é uma vergonha, mas nunca foi a Portugal.

Um homem que tinha passado os últimos 28 anos na prisão!

Consegue colocar-se numa posição em que é ele a ter de me pedir desculpa. É uma coisa de uma grande habilidade política. As pessoas, como a gente sabe, não são todas iguais, e às vezes saem muito boas. O Mandela saiu.

Fisicamente tinha o ar de quem tinha acabado de passar vinte e tal anos na prisão?

Não. Era um senhor, [quando estava na prisão] levantava-se muito cedo e fazia sempre os seus exercícios de ginástica depois das cinco da manhã. E tinha praticamente um criado branco, um sargento que trabalhava para ele e lhe era muito dedicado. Mandela saiu da cadeia em muito boa forma física.

A forma como falava revelava uma certa sabedoria?

Revelava sabedoria mas sem ser nada pedante. Era um homem muito inteligente, muito lúcido, com um fito político muito claro. Na altura ainda vivia com a Winnie mas depois deixou de estar com ela e dizia que a culpa de tudo era dele, ele é que tinha deixado a família. A Winnie teve affairs, coisas complicadas, como uma espécie de guarda-costas que batiam noutros, mas sobretudo enganou-o, como a gente diria. E o Mandela dizia que a culpa era dele.

Além da parte profissional, gostou de viver na África do Sul?

Naquela altura havia só a parte profissional. Foi um momento extraordinário, ainda por cima para quem tinha vindo do 25 de Abril. O 25 de Abril ajudou-me a perceber melhor a África do Sul. E sobretudo uma coisa: numa altura daquelas, as boas pessoas vêm ao de cima. Hoje a África do Sul é um país extremamente corrupto, o Nzuma tem 700 e não sei quantos casos em tribunal contra ele, é um desastre. Mas as pessoas com quem me dei, tanto do ANC como do lado dos brancos, eram gente moralmente muito satisfatória. Sobretudo não havia ali lugar para o pequeno cálculo, para estas coisas que se veem nos partidos, o fulano que trepa por ali fora. Como diria o Cyrano de Bergerac, ‘Grimper par ruse au lieu de s’élever par force? Non, merci!’ [‘Escalar à custa de enganos em vez de ascender pela força? Não obrigado!’]

Tem acompanhado a questão da crise política na Catalunha?

Como comentador de assuntos internacionais na rádio [Visão Global, na Antena 1], tenho acompanhado.

Acha legítimas as aspirações dos independentistas?

A pergunta não me parece muito clara. Foi ilegítimo o parlamento catalão declarar independência. O que cada um sinta ou pense sobre independência na Catalunha é outra questão. Não se trata – às vezes parece – de uma brincadeira de estudantes; por outro lado, a liberdade não obriga a ter razão, dá sim o direito a não a ter. Dito isto, estamos no primeiro quartel do século XXI, pertencemos à União Europeia; ‘independência’ não tem a mesma carga emocional, simbólica e prática nem as mesmas ilusões que tiveram as independências europeias do século XIX e a seguir à paz de Versailles. Julgo que se verá a 21 de dezembro que a maioria dos catalães preferem estar como estão a meterem-se numa fantasia improvável, divisora e ruinosa.

Vislumbra alguma solução para este imbróglio?

O meu palpite é que as coisas se vão compor a bem, levando algum tempo e, porventura, implicando alguns ajustes constitucionais. Mas há sempre chicos-espertos para remexer a cinza até encontrar brasas ainda candentes. A história de Espanha é complicada e tentadora para quem a queira complicar mais. Mas, dum lado e doutro, há muitas vozes sensatas.

Atualmente vive em Bruxelas, não é?

A minha mulher trabalha na Comissão Europeia, é speechwriter [redatora de discursos] para o Juncker.

E gosta de Bruxelas?

Acho que Bruxelas é um sítio admirável para todos os gostos – e mesmo alguns dos vícios, se for caso disso – de uma burguesia mais ou menos estável. Aquilo foi inventado para se viver bem. Você quer um bom encadernador, tem um bom encadernador. Quer boa música, tem boa música. Aquilo tem tudo. Não tenho taras especiais, mas presumo que se gostasse de sodomizar pavões arranjaria um senhor que trataria disso. Fora isso, não há um monumento que valha a pena.

Há a Grand-Place…

Não consigo ter fascínio pela Grand-Place, provavelmente já a apanhei muito turistizada. Não tenho um gosto particular por Magritte, de maneira que…

E pelo arquiteto Victor Horta?

Isso sim. E há um poeta formidável, moderno, morreu há uns vinte e tal anos, chamado Norge. Quem mo deu a ler primeiro foi o Alexandre O’Neill, e vale muito a pena.

Como é o seu dia típico?

De semana, levanto-me de manhã e levo a minha mulher à Comissão Europeia. Tenho um gabinete à minha disposição na Representação Portuguesa e às vezes vou lá. Depois escrevo um obituário, escrevo uma coisa para um blogue da Vera Futscher Pereira, e também escrevi este livro. Agora tenho de ver se arranjo outro para escrever.