Casa de Saud procura refundar-se para um futuro sem petróleo

O príncipe herdeiro quer diversificar a economia para garantir a sobrevivência da monarquia para lá do fim das reservas petrolíferas. Para isso, quer regressar a um islamismo moderado e transformar o país num dos maiores investidores do mundo

“Todas as histórias de sucesso começam com uma visão e as visões de sucesso estão baseadas em pilares sólidos.” É desta forma que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, começa a sua apresentação da “Visão Saudita 2030”, um ambicioso plano lançado no ano passado para mudar a cara do país e transformá-lo numa nação mais moderna que possa corresponder às exigências de uma população em que 70% têm menos de 30 anos.

A monarquia sunita ultraconservadora, que alberga dois dos locais mais sagrados do islão (Meca e Medina), tem passado as últimas décadas a fomentar o fundamentalismo religioso a nível internacional através do wahabismo, visão ultraconservadora do islamismo que exportou por todo o Médio Oriente e mais além, através do financiamento de madraças ou escolas corânicas (Osama bin Laden e 15 dos 19 terroristas dos atentados do 11 de Setembro eram sauditas).

Agora quer lavar a cara, com base em três pilares: transformar-se no coração do Médio Oriente e do mundo árabe; tornar-se um grande investidor internacional; e usar a sua localização geográfica como plataforma de ligação comercial entre três continentes: Ásia, Europa e África.

Mohammed bin Salman é, aos 32 anos, o rosto dessa mudança. Nomeado príncipe herdeiro por decreto real a 21 de junho deste ano, espera-se que o seu reinado venha a ser longo quando substituir Salman bin Abdulaziz al Saud, o atual monarca, que completa 82 anos a 31 de dezembro (e é o último dos que ajudaram a construir a monarquia no século xx) – um reinado que já não terá o petróleo como base quase exclusiva da riqueza, que pretende mudar usos e costumes e erradicar a endémica corrupção numa monarquia extensa de príncipes abastados e com muitos privilégios. Aquilo que Bin Salman quer é garantir uma vida longa e próspera para a Casa de Saud, implementando grandes reformas e transformações enquanto ainda há dinheiro do petróleo para as fazer.

O príncipe herdeiro precisa ainda de consolidar o seu poder antes de conseguir implementar a sua ambiciosa agenda de transformações, tanto económicas como sociais. “A transformação económica é importante, mas não menos essencial é a transformação social. Não se pode conseguir uma sem outra. A velocidade da mudança é a chave”, afirmou Bin Salman em entrevista ao “Guardian”.

A substituição do príncipe Miteb bin Abdullah do comando da Guarda Nacional foi seguida pela detenção de 11 membros da casa real (Miteb e o príncipe Turki, filhos do falecido rei Abdullah, entre eles) e mais umas dezenas de outras figuras proeminentes do regime, incluindo ministros e ex-ministros e empresários – uma ação justificada pelo combate à corrupção, mas que se enquadra melhor numa afirmação de poder por parte do príncipe herdeiro.

A autorização de as mulheres conduzirem automóveis, que entrará em vigor no próximo ano, terá um impacto na sociedade saudita, tanto de uma forma simbólica como económica. Calcula-se que um milhão de estrangeiros, na sua maioria provenientes do Sudeste asiático e das Filipinas, trabalham atualmente como motoristas das famílias sauditas, principalmente para transportar as mulheres, que não podem deslocar-se sozinhas – uma mão-de-obra que acabará por se reduzir substancialmente com a diminuição da procura. Mas esse é apenas o começo: a Visão Saudita 2030 estabeleceu o objetivo de colocar mais mulheres no mercado de trabalho, a ponto de poderem crescer dos atuais 22% da força laboral para uns 30% em 2030.

Antevendo o declínio da economia dependente do petróleo, a Arábia Saudita pretende diversificar as suas fontes de rendimento, transformar-se na tal plataforma comercial de ligação entre três continentes e atrair mais turistas – está prevista a construção de resorts ao longo da costa do mar Vermelho que se regerão por padrões ocidentais, e não pelos códigos sociais restritos impostos aos sauditas (ou seja, onde se permitirá o uso de biquínis e o consumo de álcool). Além dos peregrinos a Meca e a Medina, a monarquia saudita quer atrair outros turistas para o paraíso do mergulho.

O príncipe herdeiro, conhecido pela sigla MbS, quer fazer regressar a Arábia Saudita a um islamismo moderado, “aberto ao mundo e a todas as religiões”, bem diferente da doutrina ultraconservadora que, pegando nos ensinamentos do pregador Wahhab, do séc. xviii, se dedicou a impor medidas sociais destinadas a purificar o islamismo e devolvê-lo às raízes do séc. VII.

“Em certo sentido, Mohammed bin Salman está a tentar lutar contra um establishment religioso que já está enfraquecido. A maioria dos clérigos wahabitas não estão contentes com o que se está a passar, mas preservar a aliança com a monarquia [que vem desde a fundação da dinastia de Saud, no séc. xviii] é o mais importante. Têm mais a perder se protestarem”, diz ao “New York Times” Stéphane Lacroix, especialista em política islâmica do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po).

Três pilares da visão saudita 2030

Uma sociedade vibrante: Este pilar consiste na reafirmação da identidade muçulmana da Arábia Saudita, como farol do mundo árabe e islâmico com a referência em Meca. Os princípios islâmicos da moderação, do orgulho e da cultural ancestrais estarão no centro. O governo saudita irá focar-se no aumento do número de peregrinos que viajam a Meca para a umra (a peregrinação que pode ser feita durante todo o ano, ao contrário da hajj), com o reforço e modernização das infraestruturas de transportes, mas também com a realização de eventos culturais e a construção do maior museu islâmico do mundo, a fim de impulsionar o árabe enquanto língua global. Em termos de qualidade de vida, o governo considera a saúde um elemento fundamental para o sucesso do programa, encorajando a prática de desporto pela população. 

Uma economia próspera: O governo saudita pretende diversificar a economia, libertando-a da dependência do petróleo. Apostando na educação como base para uma economia competitiva, pretende desenvolver um sistema educativo alinhado com as necessidades do mercado, criando novas oportunidades de empreendedorismo. A carteira de investimento irá sendo diversificada para desbloquear o crescimento de setores económicos. Para além disto, irá também privatizar alguns serviços públicos com o intuito de melhorar o ambiente económico e atrair investimento estrangeiro, bem como capital humano. A localização geográfica desempenha um papel fundamental neste pilar, já que a Arábia Saudita pretende transformar-se num centro nevrálgico para a economia mundial.

Uma nação ambiciosa: O governo saudita quer realçar a ambição da nação saudita através da transparência, prestação de contas e desempenho – fortalecendo a proteção dos recursos vitais sauditas, potenciando transparência, prestação de contas e desempenho governativo, mantendo, ao mesmo tempo, o compromisso de não cobrar impostos sobre rendimentos e bens, e conseguindo fugir aos défices orçamentais através da diversificação económica. O plano visa intensificar os laços com o setor privado e com os cidadãos, melhorando a comunicação e o trabalho dos serviços públicos. Haverá uma reestruturação dos conselhos supremos com a criação do Conselho de Assuntos Políticos e de Segurança e o Conselho dos Assuntos Económicos e de Desenvolvimento.