Sócrates forjou contrato da casa de Paris

Para esconder o facto de ser proprietário do apartamento na Av. Président Wilson, José Sócrates fez um falso contrato de arrendamento com Carlos Santos Silva. Mas a tramoia foi descoberta – e uma conversa em que dá ordens ao amigo não deixa dúvidas sobre quem é o dono da casa.

José Sócrates e Carlos Santos Silva celebraram um contrato de arrendamento fictício, com data falsificada, para esconder o verdadeiro proprietário do apartamento sito na Av. Président Wilson, em Paris. O contrato foi efetuado em 2014 com data de dezembro de 2012.

O estratagema foi montado depois de uma notícia do Correio da Manhã sobre negócios imobiliários entre Sócrates e Santos Silva ter alertado os dois homens para o perigo de uma investigação sobre o assunto. 

Para a elaboração do contrato, utilizaram os serviços de Gonçalo Trindade Ferreira, advogado de Santos Silva – ao qual coube forjar o documento com a ajuda de um escritório parisiense de advogados peritos em direito fiscal, Gozlan & Parlanti Associés, onde Gonçalo Ferreira se deslocou em janeiro de 2014. 

No regresso a Lisboa, o advogado trará a garantia dos colegas franceses de que tratariam da escritura com caráter retroativo, bem como de outras diligências necessárias para que não fosse deixado rasto. 

O referido documento (que foi recuperado mais tarde numa busca) possuía as seguintes cláusulas: duração de seis meses, com início a 1 de janeiro de 2013 e fim a 30 de junho desse ano; um valor mensal de três mil euros; um depósito de garantia de três mil euros, que devia ser feito aquando da assinatura do contrato; pagamento da primeira renda aquando da entrega da chave do imóvel; e pagamento da renda no primeiro dia de cada mês. 

Para dar mais realidade ao embuste, Santos Silva teria de emitir um recibo a Sócrates e declarar esse rendimento em França.

E-mails  traem os advogados 

Mas a correspondência eletrónica trocada a partir desse encontro entre o advogado português e Frank Gozlan, um dos sócios do escritório de advogados franceses, acabaria por os trair. 

A 27 de janeiro, Trindade Ferreira contacta o outro: «Caro colega Gozlan, na sequência da nossa reunião de 14 de janeiro de 2014, gostaria de saber quais são os elementos de que precisa para o contrato e para o acompanhamento fiscal do meu cliente. Agradeço também que me envie os seus honorários». 

Um mês depois, o advogado português envia novo e-mail com os elementos para o outro elaborar a escritura: «Bom dia caro colega, infelizmente não tive a oportunidade de passar no seu escritório. Envio em anexo os documentos para o contrato de arrendamento. Falta apenas o nome do inquilino. O arrendamento terá início no dia 1 de janeiro de 2013 e o seu termo em 31 de julho de 2013, apartamento mobilado. O valor da renda é de aproximadamente €5.000».

Com efeito, Santos Silva e Sócrates começaram por acordar que o valor da renda deveria ser de 5.000 euros. No entanto, em fevereiro de 2014, depois de vários contactos entre Gozlan e Trindade Ferreira, são enviados os últimos dados para a concretização do documento – e, além de se referir que o inquilino é José Sócrates, indica-se um novo valor de renda: 3.000 euros. 

O francês mostra-se confuso com esta alteração repentina e questiona o colega português, que justifica a mudança nos valores com o facto de o apartamento ter entrado em obras logo a seguir, em agosto de 2013. No final do contrato, é incluída a data de celebração do mesmo: «Feito em Paris em 30.12.2012». 

Esta data, que não corresponde à verdade, serviu apenas – de acordo com o MP – para tentar esconder o facto de Sócrates ser o verdadeiro proprietário do apartamento, que fora adquirido por 2,8 milhões de euros, tendo as obras orçado em 400 mil euros.

Assim, o MP concluiu, no despacho de acusação: «Não era intenção dos arguidos celebrar qualquer contrato de arrendamento, mas tão só forjarem aquele documento para dar justificação à utilização pelo arguido José Sócrates do apartamento sito na Av. Président Wilson, em Paris, acautelando qualquer nova notícia sobre imóveis adquiridos em nome do arguido Carlos Santos Silva e sua associação à pessoa do arguido José Sócrates, bem como para acautelar qualquer investigação criminal que as notícias já publicadas pudessem ter desencadeado».  
Os investigadores referem ainda que o antigo primeiro-ministro «nunca havia procedido a qualquer pagamento de rendas» e que o seu amigo nunca declarou em Portugal os rendimento obtidos através deste imóvel, «declaração a que estava obrigado no caso de auferir, efetivamente, rendimentos do mesmo».
 
‘Tinha intenção de pagar rendas, mas vivia com dificuldades’

José Sócrates começou a viver no apartamento da Président Wilson em setembro de 2012, mas o contrato forjado indicava o início do arrendamento em 1 de janeiro de 2013, três meses depois. 

O interrogatório conduzido pelo juiz Carlos Alexandre aos dois arguidos começava exatamente por este desfasamento – e as respostas não convenceram o magistrado: 
Carlos Santos Silva (CSS) – Eu tive um contrato de arrendamento com o Eng.º Sócrates, portanto, de 1 de janeiro até 30 de junho.

MP – E antes, até ao final do ano?
CSS – Cedi… Cedi graciosamente.
Juiz Carlos Alexandre (JCA) – E qual foi o valor da renda que convencionou com o Eng.º Pinto de Sousa?
CSS – Se a memória não me trair, julgo que foi quatro mil euros.
JCA – E chegou a acertar contas a respeito disto?
CSS – Não, não acertei contas ainda.
JCA – Portanto, o senhor Eng.º ainda não lhe entregou dinheiro nenhum por conta dos meses que lá esteve?
CSS – Não.
JCA – Portanto, estamos a falar de, sensivelmente, 24 mil euros!
CSS – Exatamente.
MP – Há uma dívida ou o senhor acha que este contrato é para esquecer? Foi um contrato feito, por exemplo, só para o senhor ter um contrato na mão?
CSS – Não, não, não, não, não. Era… era para pagar, como é evidente, senhor procurador.
 
Sócrates defendeu a mesma tese, explicando que apenas não conseguiu pagar as rendas por viver com dificuldades:
José Sócrates (JS) – Eu sempre insisti em pagar renda ao Carlos, ele não queria que eu lhe pagasse, mas eu queria pagar. Eu vivo do meu trabalho e não tenho meios, a não ser alguma coisa que a minha mãe me deixou. O plano não se concretizou porque as obras se demoraram e eu agradeci e desisti.
JCA – Portanto nunca se celebrou nenhum contrato de arrendamento?
JS – Eu tive intenção de pagar renda ao Carlos. A intenção dele era ‘vives aqui, e eu vou fazer obras’. Aquilo tinha problemas de degradação que eu fui tratando.
MP – A pergunta direta é se foi assinado um contrato de arrendamento, quer no primeiro período quer depois.
JS – Eu julgo que sim, por minha insistência, mas não posso garantir porque a resistência do Carlos era grande.
JCA – O facto é que nunca lhe pagou nada.
JS – Nunca, mas fazia intenção, vivia com dificuldades e o empréstimo do banco estava a acabar.
 
Santos Silva nunca pagou impostos em França

Por ter um apartamento avaliado acima de 1.3 milhões de euros, Santos Silva estava obrigado a pagar o Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna (ISF) em França, que deveria ter sido liquidado em junho de 2013 e 2014, como o advogado Frank Gozlan explicou a Gonçalo Ferreira nos e-mails trocados. 
Para além disso, Santos Silva estava obrigado a declarar as rendas obtidas.
De acordo com a investigação do MP, não foram detetados quaisquer pagamentos dos referidos impostos nas contas bancárias de Santos Silva e do seu advogado, à exceção de uma transferência para a Direção de Finanças Públicas francesa, em abril de 2015, de 2.291 euros. No entanto, no seu depoimento, Santos Silva assegurou ter pago todos os impostos.
CSS – Eu paguei os meus impostos em França desse contrato.
MP – Os seus impostos pelo imóvel ou pelo rendimento do imóvel?
CSS – Pelo rendimento, que é obrigatório em França pagar, está a perceber?
MP – Apresentou alguma declaração cá em como estava a pagar impostos em França para não ser tributado nos dois lados?
CSS – Eu vou pedir agora, porque só agora é que me apercebi por acaso da dupla tributação.

Sócrates dá ordens a Santos Silva sobre as obras

Antes da elaboração do contrato fictício de arrendamento, Sócrates punha e dispunha do apartamento em Paris. Não pagava qualquer renda, emprestava a casa aos amigos e usava-a a seu bel-prazer. Era, aliás, o antigo líder socialista que, em 2013, ordenava a um subserviente Carlos Santos Silva como fazer a remodelação da casa da Président Wilson.
JS – Pronto… Lá estive.
CSS – Pois.
JS – Olha, é pá, era preciso decidir as portas, não é?
CSS – Sim, ele ia ver, ele ia ver se recuperava…
JS – Não, ele já me disse, mas aquilo é para substituir tudo, pá! Diz-lhe lá isso. E também a janela da sala… Ele disse que pode lá fazer um…
CSS – Ok, já lhe vou pedir a proposta.
JS – Pois… Resolve lá isso com ele…
CSS – Ok.
JS – Aquilo não me parece é que esteja a correr com grande velocidade. Mas depois de tomarmos umas decisões… Enfim…
CSS – Ok. Já trato disso com ele.

Também à família, Sócrates deu instruções para não usarem o telefone para discutir questões relacionadas com a casa de Paris. O que não resultou: quando o filho Eduardo começou a mostrar o seu descontentamento por não poder instalar-se no apartamento, dizendo estar farto de viver num aparthotel, quebrou as regras estabelecidas. Apesar de reconhecer que não pode «falar de coisas assim ao telemóvel», foi apresentando queixas sobre a casa.
 
JS – A casa ‘tá quase pronta…
ES – Pai, está quase pronta para ser vendida, ou pelo menos foi isso que tu me disseste…
JS – Não.
ES – Tantas teorias diferentes… Não sei em qual delas hei de acreditar.
JS – Eu nunca…
ES – Não posso falar de coisas assim ao telemóvel, por isso não vou falar…
JS – Deixa, desculpa lá. Mas o que é que eu te disse que ia ser vendida? Quem é que te disse isso? É pá, desculpa lá…
ES – Não, com quem estivemos…
JS – Não, não. Já te disse, pá, que vocês vão para lá assim que aquilo estiver pronto. Mas o que é que eu tenho que dizer mais, pá?
 
Conversa fabricada

Antes de 2014, durante as obras, Sócrates referia-se à casa como se fosse sua, usando muitas vezes o plural quando comunicava com Santos Silva: «Ó pá, o gajo anda-nos a aldrabar. Porra, é preciso agora tratá-lo com dureza, pá. Porra, pá! Quer dizer, deixa-nos aquilo num estado miserável, pá. Porra, pá, e estou farto de ter lá a malta também com a tralha às costas, pá». 

No entanto, após a publicação da notícia do Correio da Manhã – e já com o contrato de arrendamento forjado nas mãos – passam a utilizar outra linguagem para despistar qualquer investigação. 

A partir daí, sempre que fala com o amigo, Sócrates passa a usar expressões como «andas a ser enganado», afirmando que estava apenas a dar a sua «opinião honesta». 

E nas conversas com outras pessoas refere-se a Santos Silva como o seu «senhorio» ou o «proprietário». 
Logo a 10 de Janeiro, sete dias depois da referida notícia vir a público, numa conversa com a ex-mulher Sofia Fava, esta também adere à cifra:

Sofia Fava (SF) – Olha, então eu vou-te já dizer o que é que se passa, pá. É assim: eu estive a ver aquilo… e não vejo condições. As obras demoraram uma eternidade, aquilo está a ficar uma coisa pavorosa cheia de rococós, pá. Eu sei que aquilo é lá para o Carlos vender ou valorizar ou não sei quê, pá, mas aquilo não está com condições nenhumas para nós.
JS – Ó pá, mas ele disse-me que as coisas iam, que estavam quase. Que a empresa lhe disse que estava quase. É pá, eu já protestei com ele…
SF – Sim, a empresa diz que está quase desde dezembro…
JS – Já quase me chateei com ele, pá. O que é que queres que eu te faça, pá?
SF – Ó Zezito, é assim: eu agradeço imenso, mas aquilo não ‘tá com condições para estarmos lá e para o teu filho estar lá a estudar. Não ‘tá com condições mínimas. Não sei quando é que vai estar pronto, eu não consigo estar lá a viver com homens das obras a entrar e a sair. É pá, não! Vamos alugar uma coisa qualquer, vamos ver um sítio qualquer, agradecemos muito a generosidade, mas vamos ter que optar por outra coisa…

Para o MP, esta conversa foi ‘fabricada’ e tinha como único fim despistar quaisquer indícios de crime, já que, momentos antes, Fava e Sócrates tinham estado juntos a combinar o que iriam dizer ao telefone.