Joaquim Letria. O homem que andou a contar os mortos

25 de novembro é uma data aziaga. Em 1967 morreram mais de 700 pessoas nas cheias. Muitas eram encontradas abraçadas, pelo jornalista, e cobertas de lama

Começa por me dizer que só resta ele. Morreram já todos os da equipa que cobriu as cheias de 67 para o “Diário de Lisboa”. Para que constem: Pedro Alvim, Afonso Praça, Manuel Beça Múrias e Fernando Assis Pacheco, uma equipa de grandes jornalistas de que resta Joaquim Letria. Fala deles com um sorriso triste, como quem recorda gente especial e momentos mais felizes que esse dia de tragédia. Sobre o qual Pedro Alvim vai escrever: “Era ao cair da tarde – e havia mortos. Todos muito juntos, enlameados, compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de inverno.” Para Letria, tudo começou com tons de comédia. Chovia muito em Lisboa. O teto da casa de Letria começou a abaular e a meter água. Telefonou para os bombeiros, depois de muita insistência lá o atenderam. Queixou-se, exasperado, da demora. O bombeiro, paciente, disse-lhe do outro lado da linha: “Ó homem, você está em Campolide, isso não é nada. Em grande parte da região de Lisboa é uma tragédia, há casas que foram abaixo com o dilúvio, desunhe-se.” Colocou os baldes todos que podia e foi para o jornal. A pouco e pouco, a redação chegava toda à Luz Soriano e iam telefonando aos bombeiros e a quem podiam, apercebendo-se do dilúvio e da tragédia que sucedia.

Só arrancaram de manhã para o terreno. O cenário era impressionante. Lama e água por todo o lado, casas engolidas. Joaquim Letria lembra-se de ter ido com os fuzileiros e bombeiros a uma aldeia que tinha sido literalmente submergida pelas cheias. “Morreram todos. Cerca de 80 pessoas. Lembro-me que a vista era ao início menos impressionante do que esperaria. Pareciam estátuas. As mulheres mortas abraçadas aos filhos. Agora comove-me mais a lembrança. A velhice, para além de tudo, dá-nos lágrima fácil, mas na altura as pessoas estavam cobertas de lama, não dava para perceber que era gente. Levavam-nas para os quartéis e eram literalmente lavadas à mangueirada. Só depois iam os familiares e outras pessoas entrando à procura de pessoas desaparecidas.”

Quanta gente terá morrido?

“Mais de 700 pessoas, nunca tinha visto nada assim.” Como lidou a censura com as vossas notícias? “Nós, no ‘Diário de Lisboa’, tínhamos ordem do nosso diretor de escrever tudo como se não houvesse censura, depois logo se via.” Letria sorri e diz: “Lembro-me de um episódio indicador de como se comportava a censura: as notícias passavam, mas não passava o número de mortos. Isso, eles cortavam tudo. O tipo que fazia a censura do ‘Diário de Lisboa’ teve uma discussão com o nosso chefe de redação, o Vítor Direito, a dizer-lhe que a gente inventava mortos. A partir daí, ele ficou tão passado com o censor que nos deu ordem de contar e discriminar todos os mortos: homens, mulheres e crianças.” Fora isso, “passámos às vezes a ser acompanhados em reportagem, quando íamos com os bombeiros, por polícias e às vezes pides. Os bombeiros avisavam-nos da presença deles”.