Belmiro. O homem que mandava portas abaixo

Maníaco da perfeição, obsessivo quanto ao conhecimento. Belmiro de Azevedo, dono da Sonae e do “Público”, morreu ontem. Tinha 79 anos

“Eu não abro portas. Mando-as abaixo.” Era assim Belmiro de Azevedo, dono de uma das principais fortunas do país, nome sinónimo do empreendedorismo em Portugal, detentor da Sonae e do jornal “Público”. Morreu ontem no Porto, no hospital da CUF, aos 79 anos. O funeral celebra-se hoje às 16h00, na Igreja de Cristo-Rei, no Porto. A cerimónia é reservada à família.

Dono de uma visão estratégica ímpar, “maníaco da perfeição”, falava sempre do futuro nos discursos aos colaboradores. Trabalhador frenético, a que hoje chamaríamos workaholic, Belmiro era conhecido pela devoção total aos projetos que tinha entre mãos – disponibilidade que pedia em igual medida aos trabalhadores, que o tratavam por engenheiro.

Ao contrário do outro grande empresário da comunicação social em Portugal, Francisco Pinto Balsemão, Belmiro de Azevedo não nasceu num berço de ouro nem teve a bonança das heranças. Mas a aposta no jornalismo foi um capítulo que inscreveu já no outono da sua vida. Antes disso, vieram muitos outros que começaram, sem lirismos, no momento em que pôs o pé numa escola. “Sou obsessivo quanto ao conhecimento”, resumiu ao “Expresso” em 1999.

Nascido em 1938, na pequena freguesia de Tuias, em Marco de Canaveses, Belmiro foi o mais velho de oito irmãos. O pai era carpinteiro e, como todos os homens daquele tempo e daquele outro país, agricultor. A mãe, costureira. E Belmiro, sem doutores nem engenheiros na família, mostrou logo aptidão para a escola. “Não fui um marrão nem tinha tempo para o ser”, disse à “Visão” em 1997. Afinal, desde os 14 anos que pagou os seus estudos, chegando a dar mais de dez horas de explicações por dia.

Seguiu para a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto no ano em que Humberto Delgado sacudiu o país. Interrompeu os estudos em 1959 para cumprir o serviço militar e, segundo a Universidade do Porto, que mais tarde lhe conferiu o título de doutor honoris causa em 2009, concluiu a licenciatura em Engenharia Química em 1963.

Antes do canudo já tinha iniciado a carreira como técnico de têxtil na Efanor. E dois anos depois torna-se diretor-geral da Sonae (sociedade criada em 1959 e dedicada ao fabrico de produtos derivados da madeira). Não deixou de aumentar o seu currículo com várias pós-graduações, todas feitas nos Estados Unidos: a primeira na Universidade de Harvard, em 1973, seguindo-se Stanford (1985) e Wharton (1987).

Casou com Maria Margarida Carvalhais Teixeira, farmacêutica, a quem Belmiro se referia de forma brincalhona como a sua chief emotional officer. O casal teve três filhos: Nuno, Paulo e Cláudia, tendo Paulo Azevedo sido designado como o seu sucessor.

Em 1985, a Sonae inscreve um marco na história do retalho português ao inaugurar na Maia o primeiro hipermercado do país – a 60 quilómetros de Tuias, a terra que vira nascer Belmiro 47 anos antes.

Mas as lutas travadas na Sonae – e tanto as vitórias como as derrotas, que sempre soube usar a seu favor – foram uma constante das décadas por vir [ver páginas seguintes].

Belmiro despediu-se de funções executivas dois dias antes de fazer 75 anos. Por essa altura deu uma grande entrevista à “Revista 2”, do “Público”, em que descrevia assim o seu dia-a-dia: “Levanto-me entre as 5h15 e as 6h30. Leio o jornal, faço o café. E às 7h30 saio de casa. Vou para o health club e faço 100 minutos de exercício físico. Sempre a seguir. Hoje apareceu uma rapariga nova que se voltou para mim: ‘Ena pá, faz isso melhor do que eu!’ E olhe que era ginasticada, mas estava a ser simpática. Só deixei de jogar squash há quatro anos.”

A prática desportiva foi, aliás, hábito que manteve toda a vida e transmitiu à família. Assim como a contenção nos gastos: viajava sempre em classe económica, não gostava de vender carros porque desvalorizavam e uma vez levou os colaboradores a jantar à Feira Popular depois de ter recebido uma distinção da embaixada francesa. No início da década de 90 ainda não tinha um telemóvel, por ser muito caro – mas em 1998 lança, através da Sonae, a operadora Optimus.

 

Destruir para construir

Embora tenha ficado “apenas” com as funções de chairman da Sonae em 2007, foi em 2015 que se afastou definitivamente. “A minha primeira tarefa nesta empresa consistiu em destruir para voltar a construir”, disse nessa altura, num discurso de seis páginas, justificando que a realidade que tinha encontrado “não servia para a Sonae”.

A sua visão para a empresa talvez tenha como epítome a cartilha “Homem Sonae”, uma espécie de dez mandamentos da empresa que publicou em 1985 a propósito da primeira reunião de altos quadros do grupo. E o que era um “Homem Sonae”?: era um “líder ou candidato a líder”, um homem “culto”, que “deve ter responsabilidade mental para aceitar críticas” e “apreço pelo trabalho dos seus subordinados”.

 

Frontalidade

Belmiro de Azevedo atravessou regimes e governos da esquerda à direita mantendo sempre uma particularidade que não disfarçava: a frontalidade nas opiniões.

Disse que o único comentário que Passos Coelho lhe merecia era que falava muito. E que Seguro tinha outro defeito pior: falava ainda mais. Afirmou que não contrataria Luís Marques Mendes nem para porteiro da Sonae e que Cavaco Silva era “um ditador”. Não considerava Sócrates um primeiro-ministro, mas um “chefe de um grupo de empregados” que merecia um lugar no Guinness por ter feito “tanta coisa mal feita em tão pouco tempo”.

Nem o atual Presidente da República escapou às críticas. “[Marcelo] deveria ser eliminado, pura e simplesmente. Não tem a categoria, a honestidade necessárias a um líder da oposição.”

E uma possível candidatura a Belém foi sempre descartada. “As eleições para Presidente da República são os Relvas deste mundo que sabem como é que se ganham. A maior parte dos que podiam ser meus ídolos é gente que praticamente já morreu”, disse ao “Público” na mesma entrevista.

De Sá Carneiro, desse sim, tinha saudades.

 

Sem recados

Se para a classe política não havia inibições, com os jornalistas do “Público” não havia canal de comunicação. Cumpriu a promessa que tinha feito de não intervir nas decisões editoriais, dar instruções ou pedir favores a um jornalista. E a separação, de que sempre se orgulhou, foi tão clara como azeite e água, corroborada por tantos e tantos jornalistas daquela casa.

Faria 80 anos a 17 de fevereiro e deixa um legado consolidado, mas que não é, nem nunca foi, um dado adquirido para os herdeiros. “A componente genética tem sempre uma palavra, mas não é a única”, disse, salientando, uma vez mais, o conhecimento, que considerava ser a força motriz de qualquer empresa.

A família replica o mesmo mantra, resumido desta forma pelo neto Tomás de Azevedo, filho de Nuno, em entrevista à “Visão”, em 2008: “A Sonae não é uma monarquia.”