Lucky. Como só Harry Dean Stanton

Tributo feito despedida, fim de carreira perfeito para o ator imortalizado e que imortalizou Travis de “Paris, Texas”. Harry Dean Stanton é Lucky – em parte ele próprio – no filme de estreia de John Carroll Lynch na realização.

Disse um dia Harry Dean Stanton ao “Los Angeles Times” que podia nem voltar a trabalhar como ator depois de “Paris, Texas”, pois já era feliz. Foi para esse filme, para Travis, que Wim Wenders lhe confiou o primeiro papel de protagonista numa carreira que em 1984 levava já 30 anos. Até aí feita de papéis secundários, como será o do último filme que fez antes de morrer, em setembro, aos 91 anos (“Frank and Ava”, de Michael Oblowitz, a partir da história de amor entre Frank Sinatra e Ava Gardner, com estreia para 2018). Mas filmes, e papéis, viriam muitos e para os 30 anos seguintes. E Harry Dean Stanton viveu e trabalhou, até ao fim, o suficiente para aos 90 anos poder ser Lucky, que não é menos que Travis, neste filme que marca a estreia do também ator John Carroll Lynch na realização.

O grande tributo que com a morte do ator, que não pôde já assistir à estreia de “Lucky” em Locarno (prémio do Júri Ecuménico), se fez despedida, e despedida perfeita. Porque Harry Dean Stanton é Lucky, alcunha do tempo da guerra para este homem a quem não chegamos a ouvir o nome, e Lucky pode até ser a humanidade mas será em parte Harry Dean Stanton. É mesmo ele, aliás, aquele cozinheiro da marinha das fotografias a preto-e-branco de Okinawa, em 1945. Também ele nasceu no Kentucky para chegar aos 90 anos sem nunca se ter casado ou tido filhos, sem grandes problemas de saúde. E todos os dias Lucky acorda e fuma um cigarro, e outro, entre os “exercícios de ioga matinais” e o copo de leite frio, para depois pôr o chapéu e caminhar pela rotina do café, palavras cruzadas, da loja de conveniência, casa e mais palavras cruzadas e um grande dicionário num pedestal, à noite o bar para encontrar Howard – David Lynch, que entre a rodagem do regresso de “Twin Peaks”, em que também participou, o próprio sugeriu para o papel de seu melhor amigo num filme a celebrar a vida sob a ameaça da morte.

Assim vê John Carroll Lynch este “Lucky” que Logan Sparks e Drago Sumonja, os argumentistas, lhe entregaram para realizar. “Há muito que queria realizar e isto foi-me oferecido pelos argumentistas no início do processo de produção. Não foi uma ideia minha, fui escolhido”, contou ao i o realizador de passagem por Lisboa, a propósito da apresentação do filme no Leffest. “Quando entrei, éramos só nós. Percorremos o argumento e queria ter a certeza que para lá do tributo, da celebração, havia dentro disto um filme que resultasse por si: a história de um homem confrontado com a sua mortalidade. A celebração e a inspiração no Harry seriam a base do filme, mas não o filme em si. Uma das coisas que tornam este filme tão apetitoso para a audiência o facto de não a deixar sozinha. Quando se deixa o cinema continua-se a pensar nele, por ser tão pessoal.”

Mas ainda que não fosse sobre ele, para ele, talvez não houvesse outro ator para este homem de 90 anos a viver sozinho numa casa de madeira numa pequena localidade algures no Oeste, reconhece Carroll Lynch. “Era um artista único, e um dos poucos que o poderia fazer. A maior parte das pessoas com aquela idade não têm nem capacidade física nem emocional ou intelectual para fazer o papel que foi escrito para ele. Muito menos fazê-lo tão maravilhosamente.”

O Realismo é uma coisa, Franklin Roosevelt um cágado

E os cigarros, “mais ou menos um maço por dia”, não matam. “Se matassem já tinham matado” e aqui o destino parece tão “coisa” como o realismo, cita Lucky “a prática de aceitar uma situação como ela é”. E se como o destino parece ter querido apontar, esta viagem espiritual de Lucky terá sido também viagem para Harry Dean Stanton, o realizador diz supor apenas. “Não era do tipo de pessoa que fala dessas coisas”, responde, notando que foram vários os papéis de protagonista que o ator recusou nos últimos anos de vida. “Acho que foi uma coisa de amor. Ele adorava o Logan. E talvez houvesse algo que queria dizer, talvez tenha sentido que era uma oportunidade para falar sobre o que tinha aprendido na vida. Acho que não teria aceitado se não fosse isso. Sobre a viagem [de Lucky], senti que o Harry estava para lá disso mas nesse processo ao mesmo tempo.” Morreu com uma pneumonia, “foi o seu corpo que se desligou, não caiu” como acontece com Lucky no filme. “Como o médico diz no filme, ‘qualquer coisa há de o apanhar, só não sabemos o quê’. Mas com aquela idade, aos 90 anos, ele recorda circunstâncias [comuns à história do ator e da personagem] em que tem que ter pensado sobre a sua morte – não é possível que alguém passe pela batalha de Okinawa sem pensar que pode morrer, portanto imagino que para ele este filme tenha sido um lugar interessante para criar.”

Para Carroll Lynch, que continua a apresentar o filme à volta do mundo, o que de melhor tem tido “Lucky” é a celebração em que se transforma cada estreia. “A experiência de ver o filme depois da sua morte depois de ter sido feito sem se saber que o Harry iria morrer, é estranha, mas estou muito grato pela forma como a realidade tornou o significado do filme mais profundo. Cada vez que mais pessoas o veem é mais uma oportunidade para celebrar não só este filme, mas toda a sua carreira. ”

Uma celebração da vida depois da morte? “O filme é sobre a mortalidade e sobre como viver na sombra da morte, e isso ele fez por mais 14 meses.” Mas não o suficiente para o ter chegado a ver. “Queria vê-lo no cinema e estávamos a tentar acertar as datas para uma projeção para o elenco e a equipa quando ele ficou doente. Então esperámos, mas depois… ficámos sem tempo. Tínhamos o filme e queríamos mostrar-lho, mas ele queria vê-lo no cinema. Tenho pena por isso. Mas não acho que se tenha importado tanto como nós.”