Como sócrates passou a primeira noite na prisão

Às 23h15 de 21 de novembro de 2014, o antigo primeiro-ministro era detido no aeroporto de Lisboa. «Hoje vamos fazer História, prometera horas antes Paulo Silva, o líder da operação. E cumpriu. Pré-publicação de um excerto do 2.º capítulo do livro Caso Sócrates – O Julgamento do Regime, de Felícia Cabrita e Joaquim Vieira, que…

‘‘Não terá sido tranquila a noite que passou no Colbert quem antes chefiara o governo português, equacionando todas as hipóteses que se colocavam pela frente. A chegada de João Araújo a Paris, às 11h00 de sexta-feira, tê-lo-á acalmado um pouco, mas ambos sabiam que não seria um mar de rosas nada daquilo com que iriam deparar.

No aeroporto da Portela, o dia chegava coberto de uma impaciente expetativa: Sócrates embarcaria ou voltaria a recuar?

[…]

Os nervos dominam a equipa. Está o aparelho já no solo, a encostar à manga, cumprindo o horário, quando Paulo Silva, que de novo encabeça a operação, assume a consciência do momento, ao comentar para os outros: «Nós hoje vamos fazer História».

Sócrates é um dos últimos a abandonar o Airbus, já que todos os passageiros saem por uma única porta da frente. O olhar perdera o fogo de outros tempos: com a resistência de um touro de combate, finalmente vacila. Sabia ao que vinha, apesar de acalentar ainda esperanças de não ser detido, e telefonara ao jornalista do Expresso Bernardo Ferrão dizendo-lhe a que horas chegava. Quando liga o telemóvel, os primeiros sinais não são animadores. No ecrã, aparece-lhe uma SMS acabada de enviar por uma jornalista do Correio da Manhã, Sónia Trigueirão: «Engenheiro, boa noite. Estou a tentar falar consigo porque temos informação de que foi ouvido pelo Ministério Público. Foi como testemunha ou arguido? Fizeram buscas em sua casa? O que foi levado? Está tranquilo quanto à sua inocência? Quer dizer algo sobre a questão?»

Havia anos que o Correio da Manhã não o poupava na denúncia de um rol de presumíveis irregularidades financeiras, e, como as fontes judiciais do matutino estavam em regra bem informadas, Sócrates terá pensado o pior. Liga primeiro para o seu migo Nuno André Figueiredo, licenciado em Direito e então deputado socialista (eleito pelo Porto), que nunca lhe nega favores, e dispara de chofre, depois de o outro lhe perguntar se já aterrara: «Então o que é que se passa?» O parlamentar desfila os temas dos telejornais dessa noite – surto de legionella em Vila Franca de Xira, subvenções partidárias, novas inquirições no processo dos Vistos Gold -, nada que suscite o interesse do interlocutor, até que chega a uma notícia que lhe terá ferido o ouvido: membros do Grupo Lena foram ouvidos nessa tarde no âmbito do Processo Monte Branco, a investigação judicial em curso à qual a Sábado associara Sócrates. A ligação anterior de Santos Silva ao Grupo Lena, sediado em Leiria, que já alargara os seus interesses da construção civil para um diversificado portfólio de atividades, permitia pensar que a notícia não estaria certamente desligada das detenções da véspera.

[…]

São 22h31 quando ainda tenta uma ligação a João Araújo, que também regressara nessa noite de Paris mas num voo low-cost, com chegada prevista mais ou menos à mesma hora. O outro, porém, não atende – porque o seu voo está atrasado -, e Sócrates sai do avião, uns 15 minutos depois de aterrar.

Percorre, imperturbável, toda a manga. No fim, está um grupo de homens parados em pé – dois da AT, três da Alfândega e os agentes da PSP -, que, com o olhar, perscrutam os passageiros. Fixam-se no indivíduo do dólmen escuro e não têm dúvidas. Interceta-o Paulo Silva, que informa o recém-chegado estar ali aquela equipa para executar a sua detenção e levá-lo até onde ela possa ser formalizada. Se ele quiser cooperar, muito bem; caso contrário, haverá outras formas de concretizar a missão.

O viajante não esboça qualquer sinal de resistência ou rejeição. O inspetor tributário dá-lhe uma alternativa: ir para uma sala da Alfândega e oficializar ali a detenção ou fazê-lo mais tarde no DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal – o braço do MP destinado à investigação da «criminalidade violenta, altamente organizada ou de especial complexidade»). O ex-líder socialista escolhe a segunda opção.

Paulo Silva é o único agente que daí em diante dialoga com Sócrates, a quem pede que entregue o telemóvel, que traz na mão. Mas os outros não perdem pitada de um momento que sabem ser único nas suas vidas. Um dos aduaneiros fixa o fácies do interpelado: «Eu tinha à frente uma pessoa com ar abatido, que o envelhecia. Quando questionado se sabia o que estava a acontecer, disse que sim, que o advogado o tinha informado. Mas fiquei com a ideia de que ele não esperava ser detido. Estava de olhos esbugalhados, sem mostrar espanto, nem indignação, nem qualquer tipo de revolta. Não perguntou porquê, não houve nenhum momento em que não desse a entender desconhecer o que estava em causa. O olhar dele era o de uma pessoa perdida, que não tinha os amigos ali à volta, os guarda-costas, a sua gente de confiança.» Uma rápida revista à sua ligeira bagagem revela que, como roupa, traz apenas uma camisola quente e uma camisa nova, tendo deixado em Paris os fatos e as compras da viagem – evidência de que não excluía a sua detenção à chegada. Como leitura, transporta um livro de Hannah Arendt.

Para abandonar o aeroporto, Sócrates é também confrontado com duas opções: sair pela zona de circulação pública ou pelas traseiras do edifício (os serviços haviam ainda equacionado a hipótese de retirada pelo aeroporto militar contíguo de Figo Maduro, que porém não é apresentada ao detido). Antes de decidir, há algo que ele quer saber, porventura alertado pela SMS do Correio da Manhã: estão jornalistas no átrio? Respondem-lhe que sim – uns sete, aí e noutros locais do aeroporto, que as autoridades estão a controlar para evitar surpresas. Como apareceram, ninguém sabe ou procura explicar.

Escolhe a retirada de bastidores. Levam-no outra vez para dentro da manga e descem a meio dela, pela sua escada de segurança, até à placa do aeroporto. «Ao descer a escada da manga, levando consigo a bagagem de mão que trouxera de Paris, ele parece ter quebrado, e foi preciso ajudá-lo, amparando-lhe a mala», evocará outro alfandegário presente. «Ele não estaria à espera de que a detenção fosse ali mesmo. Pensaria que seria mais tarde.»

No solo está já estacionado um veículo Corsa escuro, da alfândega aeroportuária, destinado a levar Sócrates para fora da placa. Quando entra no carro, observa: «Isto devia ter vidros escuros.» Está talvez convencido de que é no Corsa que será conduzido ao DCIAP, mas o pequeno carro – em cujo interior, além do alfandegário que o conduz, só cabem o detido, Paulo Silva e um homem da PSP – apenas o transporta para a zona dos serviços de apoio da Portela, contornando o grande edifício de embarque e desembarque de passageiros. Pelo caminho, entre a área da placa e os pavilhões de apoio, o carro é filmado em movimento e a imagem aparecerá pouco depois na SIC Notícias, cerca da meia-noite e meia, para anunciar a detenção do ex-primeiro-ministro.

Se quem filmou a passagem do carro, na zona de handling do aeroporto, fosse um pouco mais à frente espreitar no local onde curvou à esquerda, desaparecendo na imagem, teria verificado que o Corsa parara logo uns metros adiante, para que Sócrates pudesse ser transferido para um BMW disponibilizado pela própria procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, para o transportar ao DCIAP. Avistaria até o ex-primeiro-ministro ao ar livre, em pé, a fumar os dois cigarros que lhe foram autorizados na transição entre veículos.

O BMW, carro de serviço de Joana Marques Vidal, só não fora buscar Sócrates à escada de segurança da manga dada a proibição de os veículos comuns circularem na placa. Apenas o podem fazer os que, como o Corsa da Alfândega, dispõem do dispositivo obrigatório no tubo de escape que previne a hipótese de ignição de incêndio por interação das centelhas do escape com os gases do combustível dos aviões.

Ao volante do BMW encontra-se um motorista que Paulo Silva industriara antes para a eventualidade de recorrer à ação física caso se revelasse necessário manter o passageiro detido. Está presente uma procuradora do processo, Ana Catalão, com a missão de acompanhar Sócrates até ao local onde se oficializará a sua detenção. Pouco depois das 23h00, o interpelado entra no DCIAP para os procedimentos legais. O graduado da PSP Jorge Lopes pergunta-lhe se é José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa. Confirma.

O polícia estende-lhe então cópia do documento que o remete à prisão – um despacho do juiz Carlos Alexandre, do Tribunal central de Instrução Criminal (TCIC). No registo oficial, ficam anotadas as 23h15 como a hora em que se dá a detenção.

No meio das diligências, chega ao telemóvel do ex-líder do PS uma chamada de João Araújo, que lhe é permitido atender. O advogado pergunta-lhe se requer a sua presença, mas o constituinte dispensa-o por essa noite, dado o adiantado da hora. Também a sua mãe, Maria Adelaide Monteiro Pinto de Sousa, lhe liga, quando faltam dois minutos para a meia-noite, e é igualmente autorizado a falar com ela.

O ex-primeiro-ministro é então conduzido à esquadra da PSP de Moscavide, onde vai pernoitar. É o calabouço mais próximo do Campus de Justiça de Lisboa, no Parque das Nações, para onde estão previstos os interrogatórios.

[…]

Na manhã seguinte, após uma noite mal dormida em Moscavide, Sócrates segue com a escolta judicial para a busca ao seu apartamento. Os investigadores fazem a radiografia ao leque de valiosos exemplares de pintura portuguesa pendurados nas paredes, com assinaturas de Silva Porto, Almada Negreiros, Eduardo Batarda, António Ramalho, Júlio Pomar ou Jorge Martins. Mas estão de momento mais interessados noutra coisa: o computador do detido. Não o encontram em lado nenhum, e Paulo Silva pergunta-lhe onde para o aparelho. O dono da casa reencontrara-se com a sua anatomia, recuperara do golpe assestado ao seu orgulho no dia anterior e garantia que o levara para a capital francesa. Não perde a oportunidade e humoriza: «Se quiser falar com o juiz para irmos a Paris, com todo o gosto.»