Manuel Alegre. O cravo e o travo

Distinguido há poucos dias com um doutoramento “honoris causa” pela Universidade de Pádua, onde desde 2010 existe uma cátedra com o seu nome, Manuel Alegre nunca deu as costas à História. Nem se deixou tentar pelas flores prosaicas de um quotidiano banal, sem grandeza nem projecto, sem mais dimensão épica que a de uma memória…

Espécie de índice reverso do período que decorre desde um tempo prévio a “Praça da Canção” (1965) até à actualidade, ao acontecer contemporâneo, contra o qual se manifestam os poemas insurgentes de “Bairro Ocidental” (2015), e ao desencanto de se achar nele, a obra poética de Manuel Alegre, não obstante o rigor de uma continuada busca expressiva, sempre conheceu zonas de resistência crítica que terão tido o seu peso numa definição canónica que poderíamos apelidar de vagarosa.

Poeta de várias dicções (ao contrário do que por vezes se diz), capaz daquele humor que sabe casar a coloquialidade com a gravidade da expressão, volta para si o ónus da culpa num poema de irónica provocação, “Mea Culpa”: “Desculpem lá se tenho biografia / e se vivi a vida intensamente / dedicado à política e à poesia / o que não é por certo conveniente / Mas foi assim que aconteceu / e o destino bateu à minha porta. / Eu sei: eu é um outro e esse fui eu. / Na vitória e na derrota / na tristeza e na alegria». A paráfrase lúdica da liturgia do casamento diz bem da inseparabilidade entre esferas – na alegria e na apreensão, no entusiasmo e na decepção: “os cravos saem pela coronha”, escreve em “Vinte Anos Depois”. 

Há na sua poesia outras constantes que se desenharam cedo: a paixão da História, articulada ao mito e a um muito significativo pecúlio de vivências, a citadíssima “nostalgia da epopeia” (Eduardo Lourenço), um enérgico sentido de liberdade, o gosto do risco e do desafio. O que também logo se manifestou foi o gosto pela figuração da flor: em botão, desabrochada, pétala a pétala desfolhada, esmorecida, estiolada, moribunda, para já não referir a representação do plástico, associada a cenários de aridez ou artificialismo. 

Diferentemente de Camões, poeta com quem manteve sempre um trato intimo, que viveu na época da glória da cor, Alegre confronta-nos com uma época sem cor nem cheiro, desprovida de encantos: “Eis o verde ocupado por cimento e pedra. […] Magnólias: onde fica o vosso reino?/ Olhai a Europa de cimento armado/ não resta mais do que uma flor de plástico”. É em “Babilónia” que, com cambiantes tomadas à canção IX de Camões, desenha a paisagem desolada de um tempo “onde nem folha ou erva cresce / Seco duro estéril tempo” que de Camões reteve apenas umas flores sobreviventes, e mais ou menos murchas, de uma retórica ultrapassada por lhes faltar o húmus vivo do poema em que nasceram.

Os leitores mais constantes de Alegre não desconhecem a sua afeição pelas rosas. Mas sabem também que as não preferirá à pátria, essa “palavra malvista/ proibida pelo Império Orçamental”. E que, com certeza, ama o poeta magnólias, mas não mais que a glória e a virtude. Não a glória como mera vontade triunfada, mas entendida como aprendizagem dura do heroísmo. Ao ideal ético da apatia de Ricardo Reis sempre contrapôs Manuel Alegre uma ética do dever, indissociável de um entendimento da História que exige, em períodos de grandes desafios, atitudes claras e inequívocas. Alegre não é uma flor de estufa, nunca ficou “sentado a ver a vida”: foi sempre um poeta de pé.  

Sem nunca deixar de se afirmar, como escreveu Vítor Aguiar e Silva, um “exímio e apurado arquitecto e construtor de ritmos, de sonoridades e melodias verbais”, maneja, como poucos, as forças impulsivas da língua portuguesa. E também por isso a crítica começou por desvalorizá-lo, não hesitando em encaixá-lo nos antípodas daquele grupo de poetas -“artistas” que Alberto Caeiro, numa classificação um tanto apressada, lamentou não saberem florir, perspectivando a poesia como um “labor limae”. 

Vale a pena sublinhar que num período em que a guerra colonial se agudizava em várias frentes, estaria o poeta menos interessado em trabalhar nos seus versos “como um carpinteiro nas tábuas” – para continuar com Caeiro – e mais numa frontal oposição a toda uma ideologia de ilusões imperiais, quando o império era já corcunda e carcomido. Havia então uma flor rubra e malévola, de aura trágica: a “rosa de sangue das armas vencidas”, indissociável de D. Sebastião, metáfora de uma sucessão de desastres. De conotações disfóricas, esta flor anda, na sua poesia, associada a uma identidade naufragada e, de modo obsidiante, ao chão de Alcácer-Quibir, acentuando-se nas areias de África, no passado, como em tempos de colonialismo sagrento: “rosa de sangue no branco areal”.  

Ao contrário das rosas bravas de Camilo Pessanha, o “País de Abril” não floriu por engano. Floriu antes de Abril, no tempo certo e com a urgência das coisas inadiáveis. Rompeu por completo logo em “Praça da Canção”, à maneira de uma flor aberta, insinuando-se o colorido festivo num universo de negrume: “Lisboa tem um cravo em cada mão/ Tem camisas que Abril desabotoa / Mas em Maio Lisboa é uma canção/ Onde há versos que são cravos vermelhos/ Lisboa que ninguém verá de joelhos”. A pergunta adensou-se quando foi publicada, em 2014, a antologia que pretendeu assinalar o 40.º aniversário do 25 de Abril: como foi possível escrever sobre o País de Abril e os cravos vermelhos tantos anos antes de Abril? A resposta há muito a deu Silesius, o místico alemão do século XVII: “A rosa é sem porquê; floresce, porque floresce”.

Abril tardou mas chegou. Pesem embora a cor e o perfume que Portugal, em boa hora, recebia dos cravos de Abril, o momento revolucionário não foi além disso mesmo, um momento. No fulgor da própria Revolução, os cravos estiolaram – “Por fora/ é tudo verde. (Abril com máscaras de festa)”, escreve no profético livro de estreia; por dentro, uma paisagem esmorecida, a decepção no comum viver face aos ideais. A flor manifesta-se então por ausência no “PAÍS EM inho” : “tanta cebola a fazer de flor tanta mezinha”. Via-se agora o poeta a braços com a nostalgia de uma revolução que deveria ter mudado a vida e mudara apenas o regime. Significativas tornam-se as flores que não há: “Ainda se chovessem ou se caíssem rosas/ Para dentro do verbo/ Acontecer”.  

Num poema do “Livro do Português Errante”, “O cravo e o travo”, fala-nos Alegre de um “gosto amargo do mundo” que o leva a perguntar, como quem olha, profundamente desencantado para uma flor ressequida: “Que farei eu com este cravo?”. E a verdade é que quanto mais o tempo prolongava a triste visão desta flor de cheiro perdido e cor murchada, mais desejada se tornava “a flor de Portugal: El-Rei D. João/ D. Duarte D. Pedro D. Henrique.” 

Se tivéssemos de escolher uma flor para associar à poesia de Alegre, hesitaríamos entre a flor do verde pinho (Portugal-chão para florir) e a Flor de la mar (nau-nação embarcada), os “girassóis do império” de Pessoa, essa flor solar por excelência, e a tulipa negra de Alexandre Dumas. É que a sua obra, não isenta de contradições, requer especiais cuidados de leitura: na recusa da viagem marítima, esconde-se a apetência viajante do “Manuel Navegador”, apostado em dobrar a pequenez; na ânsia do regresso, uma euforia da partida; na recusa dos mitos, um fazedor deles; no anti-herói, o vulto esforçado do homem português – na atmosfera sombria da anti-epopeia, o seu avesso luminoso. Em suma, uma arte verbal que se traduz numa sintaxe regida pela contradição entre pólos que todavia se atraem.