Uma política de boa vizinhança

Inversamente, até porque as rivalidades literárias são bastante comuns, tento evitar encontros inconvenientes ou desagradáveis entre certos autores ou personagens. Não quero que repousem «ao lado de seres odiados», como dizia Marinetti.

Há um pouco mais de cem anos (fevereiro de 1909), Filipo Tommaso Marinetti fez publicar no jornal Le Figaro um texto deliberadamente incendiário e polémico, o Manifesto Futurista. Oriundo de um país com uma tradição artística milenar, Marinetti falava em arrasar o passado para se libertar do seu peso esmagador. «Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? […] Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo o tipo», declarava.

Se algumas das suas afirmações eram meras provocações para agitar as águas, outras havia que continuam a fazer algum sentido. «Museus: cemitérios!… Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos».

Esta passagem tem-me orientado sempre na hora de organizar a minha biblioteca. Arrumar livros é algo que faço com prazer – uma atividade, por vezes, até mais recompensadora que a própria leitura: enquanto esta pode revelar-se uma desilusão ou uma monotonia, os livros que ainda não abrimos não precisam de ser bons para que os imaginemos como tal.

Quando me dedico a essa tarefa tento, em geral, encontrar afinidades e observar uma política de boa vizinhança, para cada volume possa criar diálogos enriquecedores com os volumes contíguos. Por exemplo, a secção dedicada a Fernando Pessoa está ao lado de um conjunto de livros sobre magia e astrologia, uma das obsessões do poeta, aliás bem patente no livro Encontro Magik. Oblomov, romance do russo Goncharov sobre um grande preguiçoso, repousa (literalmente) ao lado de Proust, que escreveu quase toda a sua obra-prima deitado na cama. E por aí adiante.

Inversamente, até porque as rivalidades literárias são bastante comuns, tento evitar encontros inconvenientes ou desagradáveis entre certos autores ou personagens. Não quero que repousem «ao lado de seres odiados», como dizia Marinetti.

Mas também posso abrir uma ou outra exceção: os ditadores Hitler e Estaline estão bem juntinhos, sem qualquer distância de segurança entre si. Eles que se entendam e se guerreiem à vontade.