Crónica de uma extinção. Eram ursos, senhores

Há cinquenta anos que não se publicava sobre a presença do urso em Portugal. O livro de Paulo Caetano e de Miguel Brandão Pimenta agora editado pela Bizâncio traz novidades sobre a extinção da espécie

Ribeira de Odiana, Beja, 1294. Reza a lenda que D. Dinis dá de caras com um urso durante uma caçada. Acossado e sozinho, não recua e acaba por matar o animal numa luta corpo a corpo. O feito foi cantado pelo reino e, no túmulo do monarca, no Mosteiro de Odivelas, lá está a representação da contenda entre homem e fera. Folclore? Nem por isso. O episódio é mais verosímil do que possa, à primeira vista, parecer. Até porque, sabe-se agora, houve ursos pardos em Portugal até, pelo menos, meados do século XIX. Em segundo, um urso ibérico adulto desta subespécie pesaria cerca de cem quilos, e as fêmeas seriam bem mais pequenas do que os machos, pelo que o rei bem poderia ter-se sagrado vencedor desta disputa corpo a corpo.

Esta e outras histórias são agora contadas nesta “Crónica da Extinção do Urso-Pardo em Portugal”, um trabalho de investigação de Paulo Caetano, jornalista na área do ambiente vai para trinta anos, e de Miguel Brandão Pimenta, especialista da área da conservação da natureza e autor do projeto do Centro de Recuperação da Fauna do Parque Nacional da Peneda-Gerês. 

O livro, uma ideia que apareceu há cerca de uma década, pretende relatar, além da presença do urso-pardo no país, a forma como marcou as diferentes populações – e até a toponímia! – , bem como as causas que levaram à extinção da espécie e que vão muito além da caça. “Queríamos preencher um espaço em branco com este livro. Não havia literatura sobre isto e há cinquenta anos que não era publicado um artigo científico sobre a presença do urso-pardo no país”, explica Paulo Caetano, afirmando que, para muita gente, ainda é surpreendente que Portugal tenha sido um país de ursos.

O rei e os ursos No caso de D. Dinis, Paulo Caetano afirma que há muitas versões sobre o mesmo episódio – algumas colocam a disputa entre homem e fera no Pinhal de Leiria, outras em Odivelas – mas segundo a pesquisa efetuada pelos autores há “relatos concretos” de que o encontro do rei com o urso terá ocorrido efetivamente em Beja, o que mostra que havia ursos espalhados pelo território continental. “Mas D. Dinis teve mais episódios ligados a este animal”, conta Paulo Caetano. “Recebeu de presente um urso vivo que mantinha no Paço Real de Frielas em cativeiro, que era muito admirado por todos. Deve ter sido a primeira pessoa a fazê-lo. Frielas foi uma espécie de primeiro jardim zoológico do país”.

Novas luzes Com o decorrer dos séculos, a população de ursos foi-se tornando cada vez menor e as montanhas do Gerês foram, efetivamente, o último habitat em que a espécie se reproduziu em Portugal.

Segundo o tal artigo publicado há cinco décadas pelo professor Carlos Baeta-Neves, os ursos desapareceram do território nacional “em 1650 ou 51”. “O artigo do professor cita alguns autores, não ia diretamente às fontes, e foi isso que nos propusemos fazer”, diz Paulo Caetano. E essa busca de fonte em fonte trouxe uma descoberta surpreendente: afinal, caçaram-se ursos até bem mais tarde no país. “Havia referências de ataques de animais no século XIX e animais avistados até mais tarde do que isso mas sempre do lado galego”, revela. “Descobrimos que no dia 2 de dezembro de 1843 foi morto um urso numa batida no Gerês”.

Um manjar de príncipes O autor ressalva dois pontos essenciais com que vieram à luz do dia com esta crónica. A primeiro grande novidade, lá está, é a data da última morte de um urso em território português, quase duzentos anos depois de ter sido ‘registada’ a extinção da espécie.

O outro dado curioso adveio das catas de foral consultadas. “Essas cartas indicavam que o caçador, após abater o urso, teria que pagar o cobro e dar uma ou duas mãos [patas] do animal ao dono das terras, tal como acontecia com os javalis, em que, por exemplo, tinha que se dar um quadril, uma das melhores partes do animal. Nós não percebíamos o porquê das patas”, conta Paulo. 

Mas chegaram a uma resposta. “Ao que parece, a carne do urso, que era consumida e vendida até nos mercados em Lisboa, em que estava tabelada como ‘carne gorda’ não era consensualmente apreciada por todos”, diz. “Mas as patas, essas sim, eram consideradas um ‘manjar de príncipes’”.

Olhar para trás para ir em frente Atualmente, o urso em Portugal subsiste na toponímia – há nomes de localidades de norte a sul que se referem ao animal –, no folclore e em festas populares. O legado também está cravado na arte, nomeadamente em painéis de azulejos.

Há apenas uma pequena população de ursos pardos na Península Ibérica que têm nas Astúrias o seu último reduto. 
Embora o (triste) desfecho da história do urso em Portugal tenha sido selado há séculos – é altamente improvável que a espécie volte ao país – com esta obra os autores querem deixar algumas notas para o futuro. “Não quisemos ser apenas cronistas de uma extinção”, diz Paulo. “Quisemos perceber de que forma se modificou o território e quais foram as implicações dessas mudanças” para o desaparecimento da espécie.

Neste capítulo, um dos fatores que mais impressionou Paulo foram os incêndios que continuam a escrever páginas negras na história do país. “Encontrámos relatos do século XVII que descreviam a serra do Gerês rapada”.
Com esta crónica do que passou Paulo e Miguel querem também alertar para a necessidade de proteção das espécies e para a “forma como gerimos a nossa floresta”.“Se usarmos linguagem económica, neste caso as espécies são o que chamaríamos de ativos, ficamos sempre mais pobres quando os perdemos”.