Konstantinos Kaváfis. A mais íntima porta dos sentidos

Um ano tão hábil no horror sem fronteiras, acaba coroado na edição de poesia com uma tradução de um poeta que nos ensinou a ler a história do fim para o princípio

Ignorado no seu tempo, o mais influente dos poetas gregos desde a Antiguidade morreu de um cancro na garganta, aos 70 anos, no dia do seu aniversário. Konstantinos Kaváfis (1863-1933) levou uma vida bastante pacata, quase toda ela em Alexandria, no Egipto, uma cidade cujo cosmopolitismo ficou a dever-se às várias comunidades de origem europeia que nela se cruzavam.

O nono dos filhos de uma proeminente família de mercadores, o futuro poeta teve a infância marcada por uma sucessão de desgraças que começou com a súbita morte do pai. Por uns anos, a família mudou-se para Inglaterra tentando segurar os negócios, mas em cinco anos viram-se falidos e, em 1877, tinham regressado a Alexandria.

Edmund Keeley, o tradutor que assinou, com Philip Sherrard, a versão definitiva dos poemas em inglês, sendo a preferida do arquivo Kaváfis em Atenas, notou como, a par da sua perspicácia política, este “artífice de crateras” que se via a si mesmo como um poeta-historiador que se serviu dos mitos para celebrar esse ângulo a partir do qual alcançou uma perspectiva menos turva da história, não se limitando a ver as coisas na superfície, naquilo que são, mas antes no que provavelmente irão tornar-se. Isto incluía os inevitáveis retrocessos históricos que acabam por nos ensinar, não tanto o sentido moral da vida, mas o seu lado trágico. Kaváfis impõe-se, assim, como um cultor de mitos, estudando as particularidades que levam certos episódios a ressoar através dos tempos, e afinando a sua tão peculiar ironia ao expor os excessos que levam o homem a um grau de arrogância tal (hybris) que desperta do seu leve sono a catástrofe. 

Como outro crítico notou, no mundo de Kaváfis não falta conhecer o desfecho de nada, tudo já aconteceu. Fortunas foram esbanjadas, o panteão ficou abandonado, o corpo envelhecido. James Longenbach diz-nos que é este avassalador sentimento de se chegar tarde que origina o tão característico tom dos seus poemas – pesaroso, removido, estando a par das coisas mas sem se dar ares de sábio. A sua voz escuta-se como um vento descascando a pele das eras à beira dessa “última fronteira: a mais íntima porta dos sentidos”.

Foi já um pouco tarde na vida (ao chegar aos quarenta) que Kaváfis submeteu tudo o que até ali escrevera ao que chamou um “escrutínio filosófico”. É então que trai a convencional noção de lirismo que anda de moeda no tráfico geral da poesia, rejeita quase tudo e começa de novo, compondo a partir daí os poemas que o imortalizaram.

Dan Chiasson sintetiza o que há de invulgar na sua abordagem, como estes poemas da maturidade lembram epitáfios, transbordando ligeiramente. Se ameaçam a elegia, “assim que começam, sentimo-los dirigirem-se ao seu fim”. Nas décadas que se seguiram, construiu uma obra que balança entre valores e referências num soberbo jogo de contrastes, entre o paganismo e o cristianismo, com a herança helenística e as memórias do período bizantino, fazendo dos seus poemas artefactos meio enterrados, com a parte de fora agonizando na lembrança do que se perdeu para sempre.

Homossexual assumido, os seus poemas “sensuais” traçam um reverso poderoso dos quadros de relevo histórico, carregando o apelo mítico para um território íntimo de antros e esconderijos, em prodigiosas recriações dentro do espaço da memória, salvando e exaltando detalhes, momentos, levando o desejo de volta àquelas noites e corpos, a um prazer às escondidas, para libertá-lo dos inúteis remorsos, e finalmente aprender com a sua “dissoluta vida jovem” o contorno do que viria a ser a sua arte. “Como quem busca a boca nos confins da sede” (Hilda Hilst), a conquista da poesia não é assim outra coisa senão uma convicção de si capaz de opor-se, com a maior das serenidades, ao mundo, retaliando.

Kaváfis manteve uma relação obsessiva com os seus poemas, e se nunca publicou um livro, se preferiu distribui-los em folhas volantes ou cadernos ou pastas destinadas aos seus amigos, a selecto público, isso dava-lhe margem para voltar a eles, para substituir as antigas versões por novas. Os seus poemas eram o trabalho de uma vida, nunca encerrados senão pela contrariedade da morte do poeta, e quando se foi deixou uma série de poemas a meio guardados em envelopes. Regressava a eles como se uma intuição ou lembrança lhe exigisse algum ajuste, e assim, sem nenhuma pressa, punha em discussão os ventos que se lhe erguiam na inspiração. Não é incomum, por isso, que passem anos entre um verso e o seguinte nos seus poemas, e o que nos parece tão espontâneo seja afinal uma vertigem calculada ao milímetro. Não havia, segundo ele, nada pior para a arte do que sucumbir “às ideias e ao gosto do público ou àquilo que está interessado em comprar”.

Depois de ter morrido, passariam décadas até que o entusiasmo partilhado como uma nobreza entre uns poucos se fosse alargando a círculos cada vez menos restritos. A fortuna crítica de Kaváfis pode ser rastreada pelo modo como os poemas escritos na sua maturidade foram provocando surpresa no espírito de excelentes leitores, desde logo E.M. Forster que o conheceu em Alexandria, durante a I Guerra Mundial, e que transmitiu ao mundo a sua impressão dele num extraordinário livro sobre aquela cidade, referindo-se ao “cavalheiro grego de chapéu de palha, posando absolutamente imóvel detendo um subtilíssimo ângulo sobre o universo”.

Com essa mesma paciência que revelou ser a arma de escolha da sua persuasão, a centena e meia de poemas que Kaváfis deixou finalizados, impôs-se como um legado incontornável da poesia do século passado, e, à medida que esta começou a ser amplamente traduzida, alguns dos seus mais enfáticos admiradores – entre eles W.H. Auden e Joseph Brodsky – assinalaram como prova da sua singularidade o facto de sobreviver tão graciosamente às traduções e com um impacto tal que cria a ilusão de ter sido escrita directamente na língua de chegada.

Assim, Kaváfis supostamente teria eximido à partida os seus tradutores de incorrerem nas bem intencionadas traições para reinventá-lo segundo as variações das leis da física de idioma para idioma, mas isto só se pensarmos na tradução como um esforço de despir o acessório para salvar o essencial. E foi por ter em conta como o estilo de Kaváfis começa por ser uma recusa do estilo no que este tem de afectação, evitando o excesso de artíficio, “a filigrana verbal” e até o recurso às metáforas, que Brodsky defendeu que a tradução se apresenta “quase como o próximo passo lógico na direcção em que o poeta estava encaminhado”.

Esta ideia de que Kaváfis é um poeta fácil de traduzir revela-se, afinal, uma suposição própria daqueles que nunca puderam lê-lo no original. Manuel Resende, o responsável pela mais recente edição desta poesia em português – “145 Poemas” -, poeta e tradutor reconhecido como o maior conhecedor da poesia grega moderna entre nós, deixa claro que esta impressão não podia ser mais enganadora. “A sua poesia parece prosaica, a expressão situa-se ao rés da língua, flui sem floreados nem metáforas, foge às palavras «poéticas» que constituem o armazém banal dos bardos. No entanto, é tudo menos simples; desde já, pela variedade de discursos e protagonistas (…) pela riqueza da composição poética”, pelo uso da metrificação com grande liberdade, como varia o ritmo, usa a rima e a meio do poema abandona-a…

É a quarta vez que se editam entre nós  alguns dos 154 poemas publicados em vida por Kaváfis na versão final. Comparar estas versões com as de Jorge de Sena (que partiram de traduções, já que o poeta não conhecia o grego) ou as de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis ajuda-nos a avaliar a qualidade do trabalho de Resende, como foge a regras gerais, e propõe a cada passo um juízo muito pontual, erigindo um tribunal para decidir cada verso. Numa tradução que soma e articula infinitas nuances, a prosódia transporta para a nossa língua “a deleitosa emoção contida” que é o signo desta obra.

Como Jorge Silva Melo sublinhou já, esta tradução é a “obra de uma vida”. A de um notável poeta também ele ignorado, com três livros publicados muito espaçadamente, que resolveu empenhar-se para que, hoje, o leitor português tenha ao seu dispor um livro para se ler quantas vezes puder ao longo da vida e pela morte dentro.

“Foram 25 anos a ir e vir, traduzir e rever, refazer e reler, encontrar uma solução e desistir, ler de novo e esquecer, deixar de lado e esperar melhores dias: são vinte e cinco anos de labor e indolência, de resistência e alegria, tristeza e intensa alegria”, escreve Silva Melo. E para lá do tão evidente acto de paixão e generosidade ao celebrar este admirável pacto entre duas línguas tão diferentes, ao ler estes 145 poemas – e não são todos os 154 porque o tradutor assume que em relação a 9 não conseguiu alcançar, nesses casos, o nível que se exigiu – sentimos a tensão sacrificial que é a própria lição desta poesia. Muitos poemas abdicam daquelas impressões que, se à primeira nos teriam feito perder o fôlego, logo que a sua novidade se desvanecesse tornar-se-iam reflexos baços, e ao prescindirem dessa ourivesaria, preferem antes segurar o que é eterno. E como sabemos, porque Cesariny nos disse, a palavra de eterno não se enfeita de jóias, não reluz, mas deita sangue pela boca.