Pedro Cabeleira. “Não sou capaz de voltar a fazer um filme sem dinheiro”

Há três anos, acabado de sair da Escola de Cinema, Pedro Cabeleira atirou-se de cabeça para um primeiro filme que seria uma longa. “Verão Danado”, também o seu, agora em sala 

Conhecemo-lo no verão passado, três verões depois daquele que foi o verão danado em que, acabada a escola, Pedro Cabeleira decidiu que faria não a curta-metragem que se espera do jovem aspirante a realizador. Aos 21 anos decidiu: o seu primeiro filme, “Verão Danado”, seria uma longa. Reencontramo-lo agora no mesmo lugar, os escritórios da produtora em que trabalha, em Lisboa, várias viagens depois. Locarno, onde foi distinguido com uma menção honrosa na secção Cineastas do Presente, Mar del Plata, na Argentina, e em vésperas da estreia em sala do filme e de mais uma viagem, para Turim, na manhã seguinte. 

Com isto já viste o filme quantas vezes?

Desde Locarno? Ainda vi mais algumas. Tive de ver agora para me certificar que as cópias estavam boas para sala, logo aí vi mais duas de enfiada, e vi outra vez [no Leffest] com uns amigos meus do Entroncamento, no Olga Cadaval. Estavam lá e quis ver com eles. Mas espero que tenha sido a última [risos]. 

Porque precisas de cortar com o “Verão Danado” para te concentrares no que queres fazer a seguir ou porque te incomoda estares sempre a olhar para o teu trabalho?

Veres muitas vezes seguidas faz com que comeces a perder o encanto pelas coisas. Já não tem a ver com achar que devesse ter feito de maneira x ou y, tem a ver com um desinteresse que vem de já se ter esgotado. Quero ver o filme outra vez mas quero ver daqui a dois ou três anos, não já. Se calhar daqui a dois ou três anos, aí sim, posso dizer que podia ter feito isto desta maneira ou daquela. Agora tem a ver com já ser só… banal.

Até porque o processo foi longo. Na rodagem e na montagem. 

Teve um bocado a ver com a quantidade de coisas que queria filmar. Filmei durante sete meses com 43 dias de rodagem, imensas cenas. Cada sequência, cada bloco, levou imenso tempo. Um dia de história do personagem podia dar 15 dias de rodagem. Na montagem teve um bocado a ver com os meios que tinha mas também com o volume de material. Passei imenso tempo à procura do fio condutor certo para o filme.

O filme que precisava desse tempo?

As coisas estavam bem no fundo, então foi preciso extrair, extrair, para se chegar à essência. Teve que se filmar muito para se chegar a este resultado, não havia outro método para este filme, tinha que ser este. E era um filme que exigia uma espécie de amadurecimento também na pós-produção. Não podíamos estar demasaiado colados àquilo que tinha sido a rodagem, tinha que haver um olhar já mais distante sobre o que se tinha filmado. 

Com muita coisa improvisada, construída a partir de ensaios  com os atores à medida que iam filmando.

O que eu tinha eram cinco blocos, foi esse o ponto de partida. A partir daí, foi pensar quem seria a pessoa: o Chico [Pedro Marujo], é ao Chico que acontece isto. Depois foi descobrir quem eram aquelas pessoas todas que estavam à volta para a partir daí criar um mosaico.  Comecei a avançar com os atores, a ensaiar com eles situações que não eram do filme, outro tipo de coisas, para a partir daí  trazer as coisas para a cena e as cenas começarem a ganhar forma, a concretizar-se. Depois havia coisas mais improvisadas do que outras, mas basicamente foi isto, a partir destes blocos que eram coisas que me interessava trabalhar e que sabia que teriam potencial cinematográfico. Pelos movimentos dos corpos, a energia, o espetáculo de luz e som que são as festas, e a partir daí, o lado humano. Que humanidade há aqui? Perceber quem são estas pessoas, como é que se comportam, como olham umas para as outras. Depois foi filmar.

Qual era o processo dessas cenas não  escritas? E porquê essas cenas?

A cena no jardim com o Quartafeira [João Robalo]. Aquilo não é… aliás, quase nenhuma das cenas com o Robalo foi escrita. 

Porquê?

Porque não era a forma mais adequada de se trabalhar com ele e porque aquele personagem também era assim. Não o controlas. É um personagem que tem que ter liberdade absoluta, é isso que queres extrair dele. Aquela liberdade, aquele à vontade, aquela coisa de ele não ter filtros nenhuns. Isso só é possível se ele estiver naquele espaço em que está a construir como se estivesse a viver aqueles momentos naquela hora. E isso não pode ser uma construção que fizeste tu antes, tem que ser ele a fazer na hora. 

Sentes que filmaste o “Verão Danado” um bocadinho como se filmasses um documentário, nesta lógica de precisares de ver acontecer para criar?

Nunca filmei nenhum documentário mas, nesse sentido, sim. Mas também acho que esta é a forma mais saudável, pelo menos para mim, na minha curtíssima experiência que se limita a este filme, de filmar ficção. 

Deixar que a história vá para onde ela tem que ir?

Exatamente. Não te impores, deixares que aquilo que conduza também. Perceberes qual é o deslumbramento e deixares-te fascinar, estás ali…

… como espectador, de um certo modo?

Como espectador mas a intervir. Porque quer queiras, quer não, a partir do momento em que colocas a câmara tomas uma posição sobre as coisas. Não estás é a controlar o rumo deles porque eles também não querem ser controlados. Acho que a ficção também tem que ser um bocado isso. Ou as pessoas topam. Está a ficar cada vez mais difícil convencer as pessoas de que o cinema é real, de que não há alguém por trás a fazer truques. Por isso é que gosto muito do “The Master” [2012] do Paul Thomas Anderson. Evidentemente há alguém a olhar para aquilo, é o ponto de vista dele, mas não sentes que se esteja a impor como uma espécie de Deus que escolhe o percurso daqueles personagens. Eles vivem e ele regista a beleza da vida deles. Com este filme queria um bocado isso.

A câmara como mais um espectador, que és tu, que será o espectador quando vê o filme que o leva de personagem em personagem, de um lugar para o outro, sempre numa espécie de vertigem.

Sem nunca perceberes onde é que ele vai parar a seguir.

Como na vida.

Para mim isso é que é fixe, não a cena mindfuck do “ah, estava à espera deste twist”. Não. 

É neste limbo entre a ficção e a realidade que te interessa trabalhar?

Sim. Nem que esteja a fazer um filme sobre extraterrestres.

E quanto ao processo?

Não exatamente assim. Quero trabalhar de forma um bocado mais estruturada. Cada caso é um caso e no meu próximo filme para chegar a esta autenticidade não vai poder ser desta maneira. Terá que ser outro caminho, também com muito trabalho, mas outro caminho.

Porque este terá vindo também das circunstâncias em que filmaste.

Quando estás a fazer um filme sem dinheiro estás sujeito a que te aconteça tudo e mais alguma coisa. Tens que aceitar, simplesmente. Tens que ter uma postura bastante estóica. Se alguém se recusa a aparecer num dia de rodagem depois de ter dito que podia, tens que aceitar. Não podes exigir à pessoa que apareça, não podes exigir a alguém que te empreste material. E eu sabia isso perfeitamente  desde o início. As pessoas precisam de comer, precisam de se sustentar.

O que é que te ensinou este processo?

Claro que é possível fazeres coisas sem dinheiro. Neste caso teve a ver com o pessoal ser muito novo. Com 21 anos era impossível eu ter conseguido financiamento para uma longa. A cena é que eu achava-me no direito de fazer uma longa. Acho que uma pessoa com 21 anos tem esse direito. E há coisas lindíssimas que podem surgir daí, há uma energia muito própria daquela idade, estava aqui a falar com um pessoal que me dizia uma coisa que me deixou muito tocado: que este filme parecia um último filme. E acho que tem a ver com estares a filmar o primeiro filme e saberes que se calhar nunca mais vais fazer nenhum. Estás a dar tudo de ti de uma maneira que não darias se calhar com o conforto de uma carreira de dez anos. 

Mas isso virá também do que te levou à decisão de partir para uma longa logo ao primeiro filme: aquele descanso de saberes que se não fizesses mais nada terias feito ao menos um filme. 

Exato. E se alguém sentir que tem essa energia com 20 ou 21 anos faz sentido deixar que essa pessoa experimente. E acho que sim, acho que nessa fase é possível fazer-se um filme sem dinheiro. Depois daí… não. Eu pelo menos não sou capaz de voltar a fazer um filme assim. 

Alguém te criticou por isso? Há sempre o risco de se gerar um certo mal-estar em torno de um filme que, sem financiamento, consegue ter sucesso num país em que se faz cinema de forma tão precária. Como se isso viesse de alguma forma dizer que as coisas  – a falta de apoios e de investimento dos sucessivos governos – estão bem como estão. 

Por acaso ainda não diretamente. Não sou apologista do voluntariado para fazer cinema. Aqui ou fazia assim ou não tinha feito, mas agora espero sinceramente que isto me ajude a começar a fazer coisas de outra maneira. O meu objetivo com o filme também era passar esta ideia do “deixem-me lá agora ir para o vosso grupo do pessoal que faz filmes com dinheiro”. Foi mais isso, não foi “ah, estão a ver, eu também consigo”.

E como é que vês a situação do cinema português? A atual política para o cinema, a falta de dinheiro, as questões dos júris que têm estado em discussão?

Não me sinto muito à vontade para falar sobre o ICA porque não me sinto ainda parte disso nem sinto que vá ser tão cedo, sinceramente. Claro que é frustrante estares num país onde são tão limitadas as possibilidades de conseguires fazer alguma coisa de uma maneira séria e profissional, mas a verdade é que esta área também é um bocado exclusiva. Também percebes que não pode ser qualquer pessoa que pode ter acesso a isto. Agora, o que é que eu sinto? Uma das coisas que mais me frustra é a quantidade de lutas políticas por parte dos produtores e dos realizadores contra o ICA. Não estou contra [o que defendem], o problema é que isto é uma coisa sistemática. E desde o meu tempo de escola que sinto que o pessoal está a entrar numa guerra sem fim em que todas as pequenas conquistas que façam serão uma derrota para outros, que a seguir vão estar a lutar contra as conquistas que fizeram. E assim se dá um passo atrás para se dar depois outra vez um pequeño passo à frente e vai andar-se nisto ad aeternum, quando ainda por cima o ICA financia o quê? Cinco, seis projetos por ano? E somos dezenas de realizadores neste país. Não quero envolver-me nisso, não quero estar nessas disputas burocráticas. Quero é fazer filmes. Claro que estou aqui a dizer isto e onde é que vou buscar o dinheiro? Porque depois há isso: se não for o ICA, onde é que se vai buscar o dinheiro? Mas o que sinto é que se cria com isto um desencanto pelo fazer cinema.

Essa eterna luta para que continue a ser possível fazer.

Sim. O júri nunca vai ser o júri certo. Sinto que a frustração de fazer cinema em Portugal também tem a ver com isso: está tudo dependente desse jogo e que as pessoas nunca aceitam o jogo que estão a jogar. Acho que se está a lutar por uma coisa que nunca se vai resolver. E depois quem é que tem razão? Nós que procuramos fazer uma coisa mais autoral ou os que procuram fazer uma coisa mais comercial? Eles também têm direito. E depois as pessoas chateiam-se e isto é pequeno e as pessoas em vez de se unirem não se querem olhar umas às outras… Fazer cinema é uma coisa muito maior do que isto. 

E voltando ao princípio disto tudo, sobre este “Verão Danado” que foi o teu verão danado também, sentes-te realizador agora?

As pessoas terem percebido que existes dá-te confiança para aquilo que vais fazer a seguir e estou, de certa maneira, de consciência tranquila. Mas os festivais valem o que valem. Agora em sala é que percebes se o teu filme teve efetivamente impacto. Para mim a verdadeira validação não é o impacto num festival, é o impacto na tua comunidade, nas pessoas que te rodeiam.