Ali Abdullah Saleh. O líder iemenita que trocou demasiadas vezes de aliados

Antigo Presidente do Iémen foi assassinado pelos rebeldes hutis, com quem se aliara depois de afastado de uma cadeira que foi sua durante mais de três décadas. As repetidas trocas de lado da barricada foram uma constante ao longo da sua vida política, postura que o traiu aos 75 anos.

Ali Abdullah Saleh. O líder iemenita que trocou demasiadas vezes de aliados

Ali Abdullah Saleh foi Presidente do Iémen durante 33 anos e ao longo de todo esse tempo sempre se etiquetou como o único homem capaz de manter o país unido contra aqueles que conspiravam para a sua destruição. «Existe uma conspiração contra a unidade e a integridade territorial do Iémen. Estamos aqui para servir e preservar o regime republicano com todas as gotas de sangue que temos», dizia amiúde. A sua saída do poder, em 2012, foi forçada, numa altura em que o Iémen se perfilava como um dos países mais pobres do globo, sofria com uma inflação e uma taxa de desemprego galopantes, tinha 40% da sua população a viver com menos de dois dólares por dia e ele, o líder, era suspeito de ter amealhado entre 30 a 60 mil milhões de dólares (cerca de 25 a 51 milhões de euros) através de práticas de corrupção e gestão danosa. Saleh aceitou a deposição, a custo, mas nunca anuiu com a perda de protagonismo. E foi por isso que se aliou aos rebeldes xiitas na guerra civil contra o seu sucessor. Os mesmos que o assassinaram na passada segunda-feira.

Nascido em 1946 na vila de Bay al-Ahlmar, no seio de uma família pertencente à tribo Sanhan, Saleh enveredou muito cedo pela carreira militar. Pelo exército da recém-criada República Árabe do Iémen – que em 1962 derrubou a monarquia e, com patrocínio do Egito, estabeleceu um regime republicano na região noroeste do atual território iemenita – combateu na guerra contra as forças monárquicas, apoiadas pela Arábia Saudita, Jordânia e Reino Unido, e uma vez derrotado o inimigo iniciou um caminho de sucessivas promoções até ser nomeado coronel.

A entrada na política deu-se em 1978 e logo pela porta maior. Na sequência do assassinato de Ahmad al-Ghashmi, em junho desse ano, Saleh foi chamado a integrar um conselho presidencial provisório, e um mês mais tarde viu o Parlamento confirmá-lo como Presidente da República Árabe do Iémen.

A braços com um território que era palco de permanentes conflitos entre as várias tribos iemenitas e que desde 1967 tinha como rival um Estado marxista, satélite da União Soviética, na região leste do presente Iémen, atropelavam-se as apostas que apontavam para um mandato curto – a CIA elaborou mesmo um relatório que previa a queda de Ali Abdullah Saleh ao fim de seis meses. Mas o novo Presidente ignorou o ruído, conseguiu reunir à sua volta as tribos desavindas e consolidou o seu poder com duas importantes reeleições em 1982 e 1988.

Adaptação e reação

O colapso soviético no início dos anos 90 revelou-se, no entanto, uma verdadeira faca de dois gumes. É certo que permitiu a Saleh juntar o norte republicano ao sul comunista, e tornar-se no primeiro Presidente de um Iémen unificado, mas também lhe colocou desafios económicos e sociais aos quais não se soube adaptar. O seu Governo foi incapaz de diluir o protagonismo político e financeiro do noroeste pelo resto do país e deixou o antigo território socialista totalmente excluído da distribuição de riqueza. A ira sulista deu azo a nova guerra civil e a uma proclamação de independência, em 1994, revertida ao fim de apenas dois meses com o triunfo incontestável dos exércitos de Saleh.

Nessa altura já a economia do Iémen estava em queda livre, uma realidade que muito se deveu ao apoio assumido pelo Presidente Ali Saleh a Saddam Hussein e à invasão do líder iraquiano ao Kuwait, em 1990. Como medida de represália, a Arábia Saudita – integrante da grande coligação, liderada pelos EUA e mandatada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, que desafiou o Iraque na Guerra do Golfo – decidiu deportar mais de um milhão de iemenitas do seu território, decisão que provocou um rombo agudo no fluxo de financiamento do qual dependiam famílias inteiras e que atascou uma economia já de si frágil.

Com a invasão anglo-americana ao Iraque, em 2003, Saleh decidiu afastar-se do seu antigo aliado e assumir uma relação aberta com os EUA. Visitou George W. Bush em Washington e, a troco de milhões de dólares, autorizou o exército norte-americano a abater alegados alvos da Al-Qaeda em território iemenita, confirmando com esse gesto a sua abertura para unir esforços e juntar os trapos com aqueles que lhe podiam dar algo a ganhar.

Queda, regresso e fim

O afastamento de Saleh da Presidência começa a desenhar-se em 2011, após a queda de Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, na sequência dos movimentos populares de contestação que varreram alguns países do norte de África e do Médio Oriente, e que ficaram conhecidos como as Primaveras Árabes. Acusado de corrupção, desvio de fundos e de práticas ditatoriais e com uma produção de petróleo em queda desde 2001, o líder do Iémen enfrentou longos meses de protestos nas ruas de Saná – aos quais respondeu com repressões violentas – protagonizados em grande medida por jovens e estudantes, e apoiados pelos rebeldes hutis que cresciam no norte e pelo movimento independentista que sobrevivia no sul.

Em 2012, e depois de inúmeras tentativas de negociar a sua manutenção no poder, um já debilitado política e fisicamente Ali Abdullah Saleh acabou por se comprometer com o Conselho de Cooperação do Golfo e ceder a Presidência ao seu vice, Abd-Rabbu Mansour Hadi – apoiado por sauditas e norte-americanos -, não sem antes lograr um acordo de imunidade com o seu próprio partido e com isso garantir a impossibilidade de poder ser alvo da justiça no futuro.

A ofensiva militar do hutis – um grupo rebelde afeto à corrente zaidita do Islão xiita – sobre o antigo território da República Árabe do Iémen e a expulsão de Hadi e das suas forças de Saná e da região circundante, em 2014, transportou o país para uma guerra civil sem fim à vista e deu início a uma crise humanitária de proporções catastróficas, mas viabilizou o ressurgimento de Saleh, poucos anos depois do seu afastamento. O ex-Presidente não quis ficar a assistir na bancada à batalha pelo território que liderou durante 33 anos e decidiu juntar-se aos rebeldes que combatem a coligação aliada de Hadi, liderada pela Arábia Saudita e apoiada pelos EUA.

A nova mudança de amigos foi entendida, interna e externamente, como mais um gesto de pragmática conveniência, de um homem que nunca se mostrou disposto a abdicar do papel principal no teatro iemenita. E a relação, já de si assente em alicerces muito frágeis, acabou por ruir na sequência de um anúncio televisivo protagonizado pelo próprio Saleh, no passado sábado. O antigo Presidente responsabilizou os hutis pela guerra, apelou aos seus apoiantes para ignorarem a causa rebelde e mostrou-se aberto a estabelecer um canal de negociações com a Arábia Saudita, para se por fim a uma guerra que já dizimou mais de dez mil pessoas e que deixou milhões sem acesso a água potável e em risco de inanição.

O rebeldes xiitas não perdoaram nova troca de camisolas e na última segunda-feira atacaram a comitiva onde o ‘traidor’ seguia, a caminho de Saná. «Anunciamos a morte do traidor Ali Abdullah Saleh e dos seus apoiantes, depois de ele e dos seus homens terem bloqueado as estradas e matado civis, em clara colaboração com os países inimigos da coligação», justificou o canal de televisão dos rebeldes. O antigo Presidente foi abatido a tiro, aos 75 anos.