Pedro Eiras. Da citação como arte da decoração de interiores

“Ensaio sobre os mestres” é um monumental volume de citações em que Pedro Eiras leva até ao fim o gesto benjaminiano “de se esconder por detrás de montões de material a comentar”

Todos já escutámos, desse trapo que esbofeteia o ar amarrado a um poste na vizinhança das instituições onde os estudos literários são o campo onde pastam as gerações de académicos, alguma das lendas forjadas à volta da obra que Walter Benjamin deixou inacabada – Passagen-Werk, ou  a Obra das Passagens –, a quimérica operação de montagem a partir de uma vastíssima recolha de fragmentos, recortes e citações, um prodigioso mosaico que deveria erguer uma enérgica malha de sentidos, numa constelação atrás da qual o genial exegeta poderia prescindir de qualquer comentário.

A ideia não era, contudo, tão radical, e a par das citações, que, segundo Rolf Tiedermann, serviriam para construir as paredes deste monumental edifício de saber, Benjamin teria fornecido uma grande quantidade de reflexões teóricas e interpretações, as quais, funcionando como a argamasse, deveriam assegurar a solidez desse edifício. Se a obra nunca se concluiu e se o próprio editor desta “se perguntou algumas vezes se seria razoável publicar esta esmagadora massa de citações”, talvez, permanecendo como um sonho, esta obra tenha projectado um horizonte bem mais aliciante para os seus seguidores. E é fácil perceber este fascínio considerando que, “em termos simplesmente quantitativos, este volume constitui um sexto da produção intelectual de Benjamin, e os seus fragmentos de pesquisas e comentários debruçam-se sobre aquele conjunto de temas que guiaram todo o seu pensamento e escrita de maturidade”, como sublinha Susan Buck-Morss.

Sobre este vazio deixado por Benjamin, acaba de saltar Pedro Eiras (1975) um dos mais prolixos autores da sua geração, alguém que, com um pé fora e outro dentro da academia, tem sabido fazer a espargata e cumprir com ‘O Processo’ hoje exigido nos meios universitários, com nefandos modelos de avaliação a inverterem a relação da qualidade a favor da quantidade, num efeito de “tecnocratização do ensino da Literatura”, impondo uma tabela cega para tudo o que possa ser mais difícil, a favor do que seja escorreito e fácil de embalar e distribuir pedagogicamente.

Delfim dos estudos de literatura contemporânea portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a par da sua produção ensaística, Eiras tem hoje publicada uma série de obras de ficção e teatro, com traduções e encenações lá fora, e é uma das figuras que melhor tem sabido adaptar-se a uma visão geral da cultura como um território rejubilante, e da literatura enquanto forma artística que se apresenta hoje mais porosa do que nunca às outras artes e campos do saber.

Este sentido de oportunidade tem levado Eiras a desdobrar-se numa série de empreitadas literárias que o leitor nem precisa ler para ficar siderado com a sua amplitude e ambição, e sempre infundidas de um alto teor meta-literário. Isto é particularmente evidente nas mais recentes propostas de ficção, seja em “Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro”, propondo-se aqui reconstituir o vazio na correspondência entre os dois expoentes do nosso Modernismo, ou, seja em “Bach”, romance que tem o compositor-fetiche dos literatos como seu protagonista ausente, tentando fazê-lo manifestar-se através de catorze tentativas de aproximação à sua música: “Uma carta de Anna Magdalena, uma cena de montagem de um filme, as conversas de técnicos de som em Nova Iorque, os pensamentos de Etty a caminho do campo de concentração, o silêncio.” Dito isto, deve reconhecer-se que estamos na presença de um dos autores que, com a mera leitura das sinopses dos seus livros, apetece premiar, quanto mais não seja pela audácia, pelo projecto. Que interessa se a realização depois morre na praia das suas intenções? “Um pouco mais de sol – eu era brasa,/ Um pouco mais de azul – eu era além”… e por aí fora.

“[…] – Ensaio sobre os mestres”, como já foi dito, encaminha não propriamente a obra projectada por Benjamin mas esse fato vazio que Adorno fez a partir das medidas que mais convinham à concepção lendária desta, e prescinde assim de qualquer comentário, confiando ao dispositivo da montagem e à ordem em que as citações e os autores nela são integrados uma função interpretativa.

Um livro como este impõe-nos, desde logo, uma vertigem e um jogo; mais uma vez o seu simples propósito, com o peso das suas 500 páginas, o seu título aparentemente reverencial, faz soar uma toada sacra, e surge-nos uma rosa rotativa, valsando enquanto as suas pétalas  se abrem como mil parêntesis, produzindo uma incessante vozearia, em que o recorte das citações, o ritmo das passagens e, por vezes, o choque, funcionam como um ardiloso perfume numa obra que vive de um génio petulante.

É evidente que dirigido a uma audiência de curiosos, de leitores que partilhem a lógica diletante como uma forma de suprir a incapacidade de focarem um aspecto até tirarem o cosmos de um grão de areia, essa atenção dispersa sairá enfartada da leitura desta obra. Evidenciando um empenho de coleccionista, Eiras vai juntando muito mais peças do que as indispensáveis, e a sua constelação mostra-se um modelo de recepção fabuloso, em que a mediocridade em pontas dos pés viaja longas distâncias à boleia dos mestres. O segredo aqui é o efeito de nivelamento, com um elenco de autores portugueses, sobretudo poetas e ensaístas contemporâneos, chamados para esta festa de anos em que o tema parece ser as grandes inquietações da literatura, mas na verdade é esse fio que serve de cordel, e permite passar o comprimido enrolado na fatia de fiambre.

E não é a pluralidade de vozes, nem a pontual encenação de discórdia, que isenta Eiras enquanto compositor entregue a uma euforia barroca, afastando das suas costuras a sensação do quanto este exercício serve uma absoluta relativização das questões. Num jogo de ténis sem uma rede, o importante é que a bola não páre. Mas se poderíamos supor que esta montagem criaria uma tensa cadeia dialógica, afinal aquilo que damos por nós a testemunhar é uma espécie de safari em que as feras são abatidas com tranquilizantes e raptados do seu habitat para se verem metidas em celas com pouco espaço entre si, o ar cada vez mais rarefeito, irrespirável.

Quando Karl Kraus denunciou a civilização actual como uma vasta conspiração contra todo o assomo de vida interior, teria já pressentido a tentativa de usar a cultura como indústria de decoração de interiores. Pressente-se a alegria de uma cultura da ostentação, um novo-riquismo literário, em que a literatura sofre uma neutralização em favor de uma inócua cultura literária, como se cada passagem fosse a carne processada para servir em croquete. Da matéria-prima faz-se uma matéria-tia, para ser reproduzida no salão, acompanhada de chá e biscoitos. Aliás, madalenas. E isto porque, desossadas, as reflexões são destituídas da força que nelas imprime um caminhar, para servir apenas o destino. Já não a viagem mas o postal.

A sensação de enxurrada leva a que, ao invés de uma progressão qualquer, em lugar de uma largada de toiros se sinta apenas um pelotão de ecos marchando, com qualquer revelação que estes textos tenham vertido no seu contexto, a ser trocada pelo seu prostituído duplo: o lugar-comum. E isto não significa que Pedro Eiras tenha falhado no seu propósito, pois ao servir-nos este livro de horas – “este é o meu corpo” – estas orações copulando piamente, alcança-se aquele efeito de fé na cultura, como algo para ler e rezar. Já não palavras que afinam e dirigem para a acção, mas palavras como um líquido amniótico, para quem o verbo é uma inércia, uma forma de vida in utero.